Economia

Finanças éticas e a implacável lógica da economia real

Esse assunto “finanças eticamente responsáveis” me fascina. Vou aproveitar duas oportunidades para analisar o tema: a primeira foram os resultados da Natura e o comportamento de suas ações; a segunda, uma entrevista de um banqueiro catalão “do bem”, publicada hoje.

Comecemos pela Natura. A empresa publicou o resultado do 3º trimestre na sexta-feira. O preço de suas ações despencou 17,5% e a empresa perdeu quase R$ 10 bilhões de valor de mercado em um dia. De maneira geral, resultado muito ruim, com queda de receita e de lucros. Por isso, a reação péssima dos investidores.

Mas o que chama a atenção é o seu press release, que inclui a agenda ESG (Environmental, Social, Governance) da empresa. São muitas as iniciativas, como se pode ver abaixo.

Pode ser uma imagem de texto que diz "Agenda Natura&.co apelo açaoaos aos ideres para apenaso tema das mudanças climáticas tambémo danatureza Natura &CO está atuando a criação die um mercado de carbono, com mplementação de mecanismos eficazes, de um Acordo pela Natureza, semelhante em escopoe significado ao Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas, endo ançado também plataforma PlenaMata, com objetivo de mobilizar as pessoas, empresas, nstituições comunidades para trabalharem juntas pela conservação da fioresta pelo fim do desmatamento na Amazónia. Foram feitos progressos adicionais em nossas metas do Compromisso com a Vida para 2030, atingindo nossa meta de equilibrio total de do prazo de 2023."

Infelizmente, nenhuma delas sensibilizou os investidores, que venderam sem dó as ações da empresa. O que comanda a decisão dos investidores são, no final do dia, os lucros da empresa. Claro, não temos aqui o contrafactual: o que seria das ações da empresa se não houvesse essas iniciativas ESG? Difícil dizer. Mas, uma coisa parece ser certa: os resultados influenciaram muito mais o comportamento das ações na sexta-feira do que a agenda ESG.

Há uma febre ESG no mercado financeiro. Todos muito preocupados com o futuro do planeta e com ações afirmativas. Há dois possíveis racionais para apostar em ESG:

1) Empresas com agenda ESG seriam mais sustentáveis e gerariam mais lucro ao longo do tempo e

2) Empresas com agenda ESG seriam preferidas pelos investidores por causa da agenda ESG, independentemente do lucro gerado.

O fato é que, até o momento, a razão 2 não tem sido capaz de sensibilizar os investidores. Mesmo uma empresa como a Natura, que é a própria encarnação da agenda ESG, não merece a misericórdia dos investidores quando apresenta resultados fracos. Com relação à razão 1, aparentemente os investidores não estão dispostos a comprar a tese de maneira adiantada. A mensagem é: mostre-me o tal “lucro ESG”, e então compraremos a ação.

A Economist, em sua edição de duas semanas atrás, traz uma reportagem interessante (The uses and abuses of green finance) sobre o porquê de a agenda ESG no mercado financeiro não estar funcionando para tornar o mundo mais limpo. Entre outras razões, a reportagem aponta que a energia suja simplesmente é ainda mais barata que a energia limpa e, portanto, empresas que usam energia suja são mais lucrativas. Mesmo que, por pressão dos investidores, as empresas vendessem seus ativos poluidores, estes seriam comprados com muito gosto por fundos de private equity, ficando longe dos olhos do grande público e continuando a gerar lucros. Afinal, no mundo capitalista, o mais barato se impõe ao mais caro. Sempre. No dizer da revista, “promessas em si não têm o poder de mudar o fato de que as empresas têm pouco incentivo para investir trilhões em tecnologias verdes que têm uma relação risco/retorno medíocre”.

A solução proposta pela revista é a taxação da produção de carbono, penalizando os lucros das empresas poluidoras. Assim, a competição com empresas não poluidoras se daria em um campo mais nivelado. O problema, claro, está em que o preço da energia subiria de maneira relevante, prejudicando principalmente os mais pobres. Penalizar os pobres de hoje para beneficiar os pobres de amanhã seria politicamente viável? Não é à toa que a Cop26 avançou pouco, para dizer nada, neste campo.

Por enquanto, a agenda ESG, no que se refere ao E e ao S, não está sendo premiada pelo investidor. Os preços das ações da Natura que o digam.

Vamos à segunda parte do artigo, com a entrevista de Joan Antoni Melé, banqueiro catalão e presidente da Fundação Dinheiro e Consciência.

Pode ser uma imagem de 1 pessoa e texto que diz "Economista Joan Antoni Melé 'Ο dinheiro não pode valer mais do que as pessoas' Economista e banqueiro catalão defende o uso consciente do dinheiro e a criação de uma economia ética ENTREVISTA BANCA ÉTICA 11/11/2021 Joan Antoni Melé é um baqueiro com 40 anos de experiência no setor financeiro e presidente da Fundação Dinheiro e Consciência : GEOVANA PAGEL"
Pode ser uma imagem de texto que diz "escolas trabalhem esse con- ceito para que eles tomem consciência na hora de to- mar uma decisão sobre uma camisa, por exemplo: Vou comprar a marca Reserva ou Christian Dior? Quais as consequências da minha es- colha? Há marcas muito fa- mosas, mas se você investi- ga a fabricação fica em Ban- gladesh, onde mulheres tra- balham em situações desu- manas. É importante o en-"

O banqueiro catalão defende um “banco ético”. Na busca de exemplos do que seria essa tal “ética” das finanças, cita o caso de uma camisa de grife que usa mão de obra que trabalha em “condições desumanas” em Bangladesh. As pessoas deveriam evitar essa grife, por ser pouco ético.

Vou mandar a real aqui, e já aviso que corro o risco de ferir a suscetibilidade de corações mais sensíveis: se você deixar de comprar a camisa fabricada com a mão de obra de Bangladesh, essa mesma mão de obra ficará desempregada e perderá o pouco de renda que tem. A hipótese de que a fábrica da camisa irá pagar mais para essa mão de obra não existe. A empresa só tem uma fábrica em Bangladesh justamente porque a mão de obra é barata. Não há hipótese de usar mão de obra em Bangladesh com salários espanhóis.

A questão é: porque os salários em Bangladesh são menores do que na Espanha? Ora, porque é um país mais pobre, onde a mão de obra é, em geral, menos qualificada. Vai de cada país, através de decisões econômicas acertadas, sair do estágio de fábrica do mundo para o estágio de produtor de tecnologia. A China está conseguindo fazer isso, tanto que várias fábricas estão saindo de lá e se mudando para países como Vietnam, Camboja e Bangladesh.

Portanto, ser fabricante de camisas é um primeiro estágio. Não existe isso de saltar estágios, cada país precisa conquistar seu lugar ao sol. As tais “finanças éticas” não vão mudar essa realidade. Pelo contrário: ao deixar de consumir produtos fabricados por esses países, estarão negando a eles o ponto de partida. O que darão em troca? Cestas básicas?

Um segundo ponto, e que sempre levanto, é o seguinte: “ética” custa caro. Não comprar camisas fabricadas em Bangladesh significa pagar mais caro pelo produto. Quantos podem se dar a esse luxo? E essa lógica vale para toda a economia “ética”, dos orgânicos à energia limpa. Novamente, os mais pobres estariam alijados da sociedade de consumo caso a “ética” prevalecesse como lógica de mercado.

Termino com a frase de efeito do entrevistado: “o dinheiro não pode valer mais do que as pessoas”. Uma frase que arranca suspiros, mas que, se você tentar entender o que significa, se desmancha no ar. É o mesmo que dizer que “saúde não tem preço”, como se não custasse nada.

Talvez o entrevistado tenha querido dizer que “os lucros não podem valer mais do que as pessoas”. Aí sim, temos uma discussão. Os lucros são o combustível do capitalismo, aquilo que permite às empresas levantarem financiamento para as suas atividades. Já tivemos experimentos de sociedades que tentaram viver sem o lucro capitalista, e vimos no que deu.

Sempre haverá a discussão de se os lucros são excessivos ou não. Sou daqueles que acreditam que o lucro excessivo chama concorrência, ainda mais no mercado de camisas. Ou seja, o lucro excessivo não é permanente. Mas concordo que se trata de uma discussão pertinente. O que não dá é contrapor lucro a pessoas, como se as pessoas fossem prejudicadas pelos lucros. Nada mais distante da realidade: sem lucros, não haveria empreendedorismo e, sem empreendedorismo, estaríamos vários degraus abaixo em termos de bem-estar. Inclusive, e principalmente, os mais pobres.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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