A tempestade perfeita da segurança pública

Cláudio Castro é um governador sem qualquer carisma, que chegou ao poder por acaso, após uma longa sequência de prisões e afastamentos de seus antecessores por corrupção. Mas tenho que reconhecer que é dele uma das falas mais importantes de um governador sobre o nosso dia a dia de violência e impunidade. Um diagnóstico preciso, curiosamente muito claro para o cidadão comum, mas incompreensível para o nosso mainstream político-jurídico-acadêmico:
“Nós temos hoje uma tempestade perfeita. Nós temos a ADPF das Favelas (…) que impôs regras para a polícia entrar nas favelas. Ela criou um conceito de extraordinariedade (…) Para a polícia entrar na favela, precisa acontecer algo extraordinário. Ela tirou a ideia de ostensividade e criou a ideia de extraordinariedade. Faz isso na zona sul… Tira a polícia da zona sul… (em tom de desafio)
Então é o seguinte: o pobre deixou de ter o direito de ter a polícia todo dia. E o que aconteceu? As facções dominaram os territórios onde a polícia não tem mais condições de entrar de forma ordinária.
Então me perguntam: governador, a operação vazou (pois o Doca conseguiu escapar)? É claro que vazou. Eu tenho que avisar a dez órgãos! Como não vai vazar? (…) Hoje toda operação vaza.
A ADPF fez o mato crescer. Quando você não apara o mato todo dia, ele cresce.
E aí vem o segundo vetor: criou-se a audiência de custódia. Antigamente o cidadão era preso e ficava na cadeia até a primeira audiência. Agora não. Agora tem que ser em 24 horas. E há uma orientação do Conselho Nacional de Justiça para que penas até quatro anos de prisão sejam respondidas em liberdade.
E o que está acontecendo? Todo mundo que assalta hoje (se for preso) está solto em 24 horas. A polícia está prendendo o mesmo cidadão 20, 30, 40 vezes! É o famoso prende e solta. Hoje, quando o policial prende um cidadão, ele brinca: ‘Pô, tio! Me libera aí. Amanhã eu tô aqui de volta’.
E aí vem o terceiro fator. Você tem a lei de armas e a lei de drogas. Quando um traficante é preso com um fuzil na mão, ele deveria responder pelo porte do fuzil, com pena de 16 a 24 anos, mais associação ao tráfico, com pena de três a dez anos. A sexta turma do STJ tomou uma decisão vinculante que desqualifica o crime de armas para o crime de drogas ‘com o agravante de crime de arma’. (…) Na prática, em vez de responder por 19 a 34 anos de prisão, ele agora responde por quatro a dez anos. E como ele sai com um sexto da pena, em oito meses ele está em casa.”
Palmas para o governador. Gaguejando aqui e ali, colocou o dedo na ferida e, de quebra, expôs todo o sistema de justiça, o mesmo que ainda neste ano poderá colocá-lo também na longa lista de governadores cassados e afastados do Rio, sob acusação de abuso de poder econômico na campanha de reeleição.
Está claro, para mim, que a deflagração da operação às vésperas do seu julgamento foi a última aposta do governador — e ela ocorre poucos dias após a fala desastrosa de Lula, que apontou os traficantes também como vítimas dos consumidores de drogas.
Ou seja, Castro criou um fato político com potencial de retirar votos decisivos de Lula num tema em que o PT nada contra a opinião da maioria da população.
A desconexão da esquerda com a realidade
Como era de se esperar, as primeiras pesquisas sobre o assunto apontam amplo apoio popular à megaoperação de 87,6% dos moradores das favelas, segundo o instituto Atlas/Intel. Para o resto da população, que não faz ideia do que é conviver de perto com bandidos com fuzis, a aprovação é menor, mas ainda assim expressiva.
No centro do debate está a condescendência da esquerda com o crime organizado — fruto de uma crença revolucionária, desde Rousseau, de que “o homem é naturalmente bom, mas corrompido pela sociedade”. O problema seria sempre o sistema, não o indivíduo.
Michel Foucault completa essa visão vitimista ao afirmar que “a prisão fabrica o delinquente”. Portanto, é preciso desencarcerar: prender só piora a situação.
É sintomático que o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski — um entusiasta das teses esquerdistas do desencarceramento e das audiências de custódia — transforme o trabalho da polícia numa eterna rotina de “enxugar gelo”, como tão bem expôs o governador Cláudio Castro. Não por acaso, sua principal marca é o programa Pena Justa, que foca na melhoria das condições carcerárias, na ressocialização dos presos e em programas de saúde para grupos específicos, como LGBTQIA+, um grupo que ultrapassou tantos os limites do razoável que teve recentemente a separação formal dos gays, lésbicas e simpatizantes.
Ou seja, nada mais desconectado da percepção geral da sociedade, sobretudo das populações faveladas, que vivem sob o domínio do Estado paralelo das facções.
Direito penal do inimigo
Em meio ao caos instalado, ganha força o debate sobre temas polêmicos, como o enquadramento do PCC e do CV como grupos terroristas, o uso de táticas de guerra em vez de simples operações policiais e até a aplicação do Direito Penal do Inimigo.
A tese, do jurista alemão Günther Jakobs — muito reverberada pelo MBL — defende um regime penal mais severo para indivíduos considerados inimigos da sociedade, com suspensão de direitos fundamentais e julgamentos acelerados.
Segundo a tese, nos confrontos com a polícia, os faccionados com fuzis nas mãos devem ser abatidos, pois trata-se de uma guerra pela reconquista dos territórios pelo Estado. Tais indivíduos não teriam os mesmos direitos do cidadão comum.
Claro que essas teses causam estranhamento na imprensa. Mas a viralização das falas de representantes das forças de segurança do RJ em telejornais aumentou ainda mais a aprovação popular à megaoperação e as tentativas de endurecimento contra o crime — principalmente após dias em que, até aqui, não surgiu um único caso de vítima inocente entre os 117 mortos, descontados os quatro policiais.
As primeiras rachaduras no consenso “woke”
Não por acaso, algumas surpresas surgiram na cobertura do caso. A começar pela postura isenta da Rede Globo, que chegou a elogiar a estratégia das forças policiais de empurrar os criminosos para a mata, para onde ocorreram a maioria das mortes.
Também digna de nota foi a fala do ministro Gilmar Mendes, que reconheceu, em plenário, que “de alguma forma nós introjetamos a ideia de que esses territórios podem estar ocupados e que… nós tenhamos que pedir licença para lá estar”! Um lampejo de lucidez em meio ao mundo paralelo do STF — logo aparteado por Flávio Dino, ministro que conta com a simpatia dos faccionados, a ponto de entrar em seus territórios sem maiores preocupações com segurança.
Por fim, o presidente do PT no Rio de Janeiro, Washington Quaquá, afirmou que a operação foi “necessária”, embora tenha criticado seu planejamento.
A guerra das narrativas
Ainda é cedo para medir o impacto político desse episódio nas eleições de 2026, mas a cautela do governo já revela preocupação.
O antídoto ao sucesso da megaoperação é que o governo realizou, há alguns meses, “a maior operação de desmonte do crime organizado sem dar um único tiro”, contra os “tubarões do PCC” que operavam na Faria Lima.
De fato, um gol do governo. Só falta agora convencer os cidadãos de que é possível reconquistar os territórios tomados pelas facções apenas com inteligência — sem polícia, sem risco e sem enfrentamento.
Enquanto isso, a disputa de narrativas nas redes sociais segue. E neste debate o governo perde. E de goleada.



