…E os anos não trazem mais (tec,tec,tec…toc,toc,toc)
Mudamos para a então casa nova em julho de 1980. Na época eu tinha 7 anos, e a escadinha continuava com Caroline e Tatiana, com 6 e 4 anos respectivamente, e a fila se encerrava com meu irmão Carlos Augusto, então um bebê com pouco mais de um ano. A casa era grande, imensamente maior que o apartamento em que morávamos, que já não comportava quatro filhos, e levou nove meses para ficar de pé, habitável. Recordo-me das inúmeras visitas à obra com meu pai, e das minhas fantasias infantis relativas ao tão esperado evento. Sair de um apartamento de 3 quartos e 1 banheiro para uma casa três vezes maior e com piscina foi um dos momentos mais marcantes da minha infância.
Mas o salário de um juiz de direito e de uma professora, com a obrigação de educar quatro filhos, não permitia grandes arroubos financeiros, de maneira que a casa nova permaneceu sem mobiliário durante alguns anos. No momento inicial, somente havia camas nos quartos, alguns armários, e a sala de TV antiga, além do escritório do meu pai, abarrotado de livros de direito, que ficava distante da área privativa. E foi assim por um tempo…
Alguns anos se passaram e já em meados da década, o cenário permanecia quase o mesmo. A sala de TV estava modernizada, tinha até TV com ‘botão de apertar’ (a anterior era com ‘manivela de girar’ e possuía a inesquecível antena turbinada com bombril), mas as salas de jantar e estar continuavam vazias, com os pisos de madeira constituindo um verdadeiro salão sem festas. Na área privativa, apenas uma diferença marcante: um lustre altamente sofisticado no quarto das minhas irmãs. Eu não entendia bem qual a sua razão de ser, em uma casa praticamente sem móveis. ‘Deveria haver outras prioridades’, pensava eu do alto dos meus 11-12 anos, mas às vezes os adultos tomam decisões estranhas. Pois bem, guardem o lustre na memória, pois ele é um dos protagonistas da história que segue.
Por uma razão até hoje inexplicável, o quarto das minhas irmãs era muito maior que o nosso. Meus pais alegavam que foi um erro do engenheiro, mas eu e meu irmão não assimilávamos muito essa história. Na verdade, mais eu do que meu irmão, que só tinha 5-6 anos e ainda não estava plenamente consciente dos temas ‘políticos’ da família! Talvez por isso, pela lei das compensações, seríamos contemplados com a primeira grande benfeitoria na casa: nosso quarto seria renovado e teríamos balcão de estudos, estante para livros e tudo mais!
Mas havia uma vantagem nos espaços ainda vazios: podíamos ocupá-lo jogando bola! Nessa época, meu irmão Guto foi iniciado no futebol ‘indoor’, e por conta dos inúmeros treinamentos comigo, tornou-se um zagueiro de razoável habilidade, apesar de um tanto carniceiro, que mais tarde teria um certo destaque nos torneios de colégio e faculdade. Éramos proibidos de jogar nas salas de jantar e estar (aquilo seria um deleite), mas invadíamos o quarto de nossas irmãs, que possuía um espaço extraordinário para um ‘gol a gol’, além do corredor que conectava os três dormitórios, também utilizado para dribles e chutes à distância.
Na época, minhas irmãs só pensavam em dançar ballet e passavam horas em aulas e ensaiando para as apresentações de final do ano, muitas vezes chegando à noite em casa. Na ausência delas, aproveitávamos para usar o nosso ‘campinho’. Mesmo com elas presentes, também o fazíamos. Com o futebol, aquele quarto havia se tornado uma extensão do nosso. O bate-bola também era uma desculpa para se jogar no carpete ainda novo, simulando grandes defesas, com uma memorável bola de meia vermelha, surradíssima e especialíssima.
À noite, meu pai normalmente estava no escritório, seu quartel general, debulhando as dezenas de processos que ele julgava em sua máquina de escrever alaranjada Remington. Como as salas de estar e jantar estavam vazias, o som da máquina, mesmo com a porta fechada, ecoava longe. Ouvíamos o ‘tec, tec, tec, tec, tec..’ incessante. Quando parava, era por que meu pai estava lendo algo para subsidiar sua decisão, ou por que se dirigiria à cozinha para tomar água, ou ainda para verificar se estava tudo bem conosco. Nesse caso, o ‘tec, tec, tec…’ era imediatamente substituído pelo ‘toc, toc, toc, toc, toc…’ dos sapatos sobre o piso de madeira. Reconhecíamos a sequência dos sons como sinal para nos ‘comportarmos’. Muitas vezes, rolava uma certa bagunça nos quartos até às 22 horas (horário em que minha mãe chegava da escola na qual ela era professora), e ao primeiro sinal de ‘toc, toc, toc…’, nos movíamos como foguetes para a cama.
Um certo dia, somente a ala masculina estava em casa. Eram 8 horas da noite e meu pai estava no escritório trabalhando. Eu e meu irmão aproveitamos mais um momento de ócio sem supervisão e fomos até o nosso ‘campinho’ do quarto ao lado, para uma partida de futebol. O Guto, por ser 6 anos mais novo, tinha o benefício do gol menor. Chute daqui, chute dali, e eu resolvi fazer uma firula. Preparar uma embaixadinha e mandar a bola por cobertura. A jogada deu certo uma vez, duas, três…a sequência de êxitos torna o sujeito mais displicente e para o meu infortúnio, bati errado na bola, ela subiu demais e com força chocou-se contra o lustre emperequetado…
Ele balançou, balançou, balançou…e caiu, espatifando-se em vários pedaços no chão. Nos entreolhamos desesperados, eu mais que meu irmão, já que o petardo tinha partido da minha perna direita, e para o nosso alívio, o ‘tec, tec, tec’ da máquina Remington em um primeiro momento permanecia a todo vapor. Agimos rápido para catar os cacos e nos livrar dos restos daquele que tinha sido o primeiro objeto de arte da casa e nesse ínterim, escutamos o ‘toc, toc, toc..’ em substituição ao ‘tec, tec, tec..’. Pronto, estávamos f….
O trajeto do escritório até o quarto devia durar uns 20 segundos, os mais longos da minha infância até aquele dia. Meu pai, que certamente ouviu o estrondo, caminhava em nossa direção para checar o que ocorrera. Não deu outra. Ainda sem nos ver, perguntou: ‘O que foi que aconteceu? ‘. Como não ouviu resposta, entrou primeiro em nosso quarto, e vendo-o sem ninguém, foi até o das meninas. E lá estávamos nós: eu, o culpado; e meu irmão, o cúmplice, aguardando nervosamente pelo nosso veredicto. Meu pai nos julgaria ali, naquele momento. Considerando que eu acabara de destruir o único objeto de valor da casa, esperava um sermão dos mais intensos, seguido de punição exemplar. Tinha receio de que ele desse cabo na nossa bola de meia vermelha. Essa seria uma pena muito rigorosa. Mas o meu grande medo era ter a reforma do quarto suspensa. Se o lustre fosse mais caro que o quarto inteiro, essa seria uma solução bem factível. A frase ‘vou repor o lustre e vocês ficam sem quarto’ latejava imaginariamente em meus ouvidos…
O sermão foi dos bons. Começou pelo preço do lustre, passou pelo valor do dinheiro, pela quantidade de trabalho necessária para comprar aquele objeto e terminou com críticas à nossa disciplina: ‘Aqui não é lugar de jogar bola!’. Meu irmão, coitado, ainda inexperiente em broncas, pela pouca idade, provavelmente não entendeu muita coisa do discurso, mas permaneceu solidário na dor, como todo bom cúmplice deve ser. Para o nosso alívio, a bola de meia não foi confiscada. E o veredicto final foi um incisivo ‘Vão já para cama!’, prontamente obedecido. Até aquele momento, permanecia a dúvida: teríamos nossa reforma suspensa?
Meu pai não retornou ao escritório após o episódio. Foi para a sala de TV, certamente ‘pt’ da vida por não ter mais nenhum lustre em casa. Naqueles tempos de vacas mais magras, aquilo era rasgar dinheiro. No escuro do nosso quarto, nos perguntávamos se a nossa pena teria sido parcial ou se seríamos submetidos a castigos maiores. Afinal, as mulheres da casa ainda não haviam chegado, e quando isso acontecesse, poderíamos ter uma repercussão ainda mais negativa. Nesse momento, valendo-se da minha autoridade de irmão mais velho, solicitei ao caçula: ‘Guto, vai lá na sala e pergunta com cuidado para o pai se nós ainda vamos ter o quarto novo’. A estratégia era mais que lógica. Ao colocar meu cúmplice de 5-6 anos para o diálogo, minimizava as chances de uma reação mais abrasiva contra o culpado; no caso, eu, de 11-12 anos…E lá se foi meu irmão em sua missão. Cuidadosamente, abre a porta, e recebe um ‘eu já te falei que é para você dormir, vai para o seu quarto!’. Ele voltou, sem a resposta. Como um bom capitão, reforcei ao Guto que não era possível voltar sem a missão cumprida, e lhe aconselhei a abrir a porta e falar, sem que houvesse tempo de ouvir a primeira advertência. E lá se foi nosso soldadinho de 5 anos…’Pai, a gente ainda vai ter o quarto novo?’. ‘Eu não sei, já te falei que é para você dormir! Vai para o quarto se não quiser ficar de castigo!’. Ficamos sem resposta. Mas pelo menos a má notícia não havia sido formalmente anunciada.
Pouco tempo depois, chegaram as mulheres em casa. Muito mais barulho e falatório, como é de praxe normalmente no universo feminino. À distância, ouvíamos meu pai relatar o episódio e as exclamações de minha mãe. ‘Putz’…íamos ouvir o mesmo sermão pela segunda vez! Mas fingíamos um sono profundo e por isso não fomos despertados. Depois dormimos, de verdade, sem saber das consequências.
Na manhã seguinte, ouvimos um sermãozinho da minha mãe. Mais ‘light’. E não tocamos mais no assunto da reforma do quarto, por precaução. O lustre nunca mais foi substituído, parece que a peça havia saído de linha. Por muitos anos, o quarto das minhas irmãs foi iluminado por um ‘spot’ com armação vazia, até que em uma reforma da casa nos anos 90, tudo foi trocado. Ficamos um tempo proibidos de jogar bola em nosso ‘campinho’. Mas logo a pena expirou e voltamos com as pelejas futebolísticas, com a vantagem de que agora não havia mais lustre para quebrar. Apesar da tensão momentânea, essa história tornou-se motivo de várias piadas e brincadeiras na família ao longo dos anos, e jamais deixou de estar viva em nossas memórias. Em tempo, nosso quarto foi renovado sem atrasos!
O ‘tec, tec, tec’ da máquina alaranjada Remington e o ‘toc, toc, toc’ do sapato no piso de madeira foram marcas registradas da minha década de 80. Meu pai sempre trabalhou duro, muitas vezes rompia as madrugadas mergulhado em seus processos. Mas estava sempre por perto.
Em 89, saí de casa para estudar e a partir desse ano, só retornei como visitante. Cheguei a viver a quase 20 horas de vôo dali, mas independente disso, durante toda minha vida, meu pai esteve no máximo a um ‘toc, toc, toc’ de distância. Hoje ainda é assim. Mas eu não posso mais vê-lo, por um tempo.
Saudade infinita, pai.
Que belo texto. Me lembra detalhes da minha própria infância, trocando a peripécia por uma demolição que fiz de uma meia parede de alvenaria da construção vizinha. Treino de karatê. Tava me lembrando, não era vc que tinha aquela babá famosa? R.C. Um abraço do Fuscão.
Victor que maravilha, que lindo, como esse guri escreve bem,bom demais, em alguns momentos confesso que fiquei apreensiva, para saber logo o final da história do lustre, qual seria o castigo. Realmente é bom demais, viajei no tempo também, com meus irmãos, fantástico, parabéns não pare nunca de escrever, muito bom. Abs
Interessante Victor, você caminha para um memorial narrativo, processual, discorrendo sobre a vida de seu pai, junto com todos. Curiosamente meu pai também foi Juíz de direito e minha mãe professora, e os tec tec tec da Remington também fazem parte de minhas memórias. Lembre-se dos prazos. Abraços.
Fala Vivi! Bom demais este texto, curioso até eu ter lido ele hoje, porque ontem mandei um recado pro Guto pra jogar um futebol, mas ele respondeu que tinha paciente até as 21h, é filho de peixe mesmo!
Muito legal lembrar do futebol no quarto de vocês, tenho isso como uma das melhores lembranças da minha infancia e adolescencia, juntamente com o futebol na piscina e as batalhas de Master e Eleiçoes noite adentro.
Grande abraço e continue nos brindando com seus textos!
Olá Vitor, que texto e mensagem linda. Dá prazer ler seu blog. Forte abraço de Lisboa, Rui Pereira
Esse lustre ficou entalado na incompreensão….tanto é que foi ao chão!!! Essas crianças dão jeito pra tudo, em tudo!!!
Texto mais do que bom: saboroso ! Não sei se vocē volta ainda à casa mas uma coisa marcante quando crescemos e voltamos às nossas casas de crianças, é que elas nunca são tão grandes como pareciam ou ficaram “gravadas” em nossos neurōnios infantis…
Que texto! Que relato emocionante! Os detalhes da nossa infancia ficam para sempre na nossa memória e é tão bom recordar. Forte abraço Victor.
Que relato emocionante! Os detalhes da nossa infancia ficam para sempre na nossa memória e é tão bom recordar. Forte abraço Victor.