Atualidades

Sobre certezas, equívocos, anões e China

Em um país qualquer em algum lugar do mundo, há muitos anos havia um grande e popular torneio de arremesso de anão. Os competidores escolhiam um parceiro diminuto e os lançavam ao ar, o mais longe que pudessem. Vencia a dupla que atingisse a maior distância.

Aos campeões, a glória. O anão e seu arremessador tornavam-se celebridades do momento, concediam entrevistas, estavam nas capas de jornais, convidados para festas, agraciados com presentes. Um ano de luxos e mimos, até a próxima edição do torneio, quando seriam desafiados por outras duplas, com anões de todos os rincões do planeta ávidos em serem arremessados bem longe.

Eis que surge a ADDA, Associação de Defesa dos Direitos dos Anões, que começa a fazer campanha contra a desumanidade daquele torneio. Afinal, os pequenos estavam sendo tratados como objetos e poderiam inclusive sofrer lesões com quedas de mau jeito. Aos poucos, o movimento foi ganhando relevância e conquistando corações de uma minoria ruidosa e incansável. Manifestações eram organizadas durante os dias de competição, buzinaços e campanhas de mídia foram exaustivamente utilizados para contaminar a imagem do tradicional evento. Estranhamente, nenhum anão fazia parte do corpo diretivo da ADDA.

Anualmente, a manifestação de repulsa à competição se encorpava, até que um dia o comitê organizador achou adequado suspendê-la, para evitar um conflito iminente entre os defensores dos anões e os entusiastas do evento.

A suspensão tornou-se cancelamento permanente e nunca mais o torneio de arremesso de anão foi realizado. Alguns anos depois, o país identificou um surto de depressão e suicídio entre os cidadãos de baixíssima estatura.

Uma pesquisa conduzida por renomados psicólogos identificou que os anões passaram a experimentar um grande vazio existencial com a extinção ‘do seu evento’, época do ano em que eles mais se sentiam importantes, elogiados e tratados com reverência por todos. Era um banho de auto-estima. A ADDA jamais se preocupou em verificar o sentimento dos anões em relação ao torneio e seu Conselho era formado geralmente por gente bem alta.

‘Sob o pretexto de me defender, acabaram com a minha vida. E nem me perguntaram o que eu achava daquilo’, disse um famoso ex-campeão do torneio, que se entregou à bebida e frequenta hoje os Alcoólicos Anônimos.

‘Os únicos anões da ADDA eram aqueles que sempre foram eliminados precocemente das competições, o movimento começou por puro despeito’, disse a esposa de um ex-recordista, desempregado e se tratando de depressão.

‘Eu tenho o livre arbítrio de escolher se quero ser arremessado. A vida é minha, quem decide o que é bom para mim sou eu mesmo’, defendia o presidente da Associação de Apoio aos Anões desempregados, criada após a extinção do torneio.

Diante do incrível aumento nos casos de suicídio entre os pequeninos, as autoridades avaliam descriminalizar a prática de arremesso, que foi considerada crime pouco tempo após a interrupção do popular evento.

‘Ainda é prematuro dizer que devemos retomar o torneio, mas a criminalização da prática foi um erro’, afirmou um legislador especialista no assunto.

Representantes da ADDA alegam que a culpa pelo aumento dos casos de depressão e suicídio é do estado, que não soube criar políticas de inclusão eficientes. Quando questionados sobre a pouca participação de anões em seu quadro diretivo, seus dirigentes desconversavam.

Anos se passaram e o imbróglio jamais foi resolvido. Torneios clandestinos surgiram, e vez por outras batidas policiais arrastavam todos para delegacia. Uma geração após o surto de suicídios, o índice estabilizou em um patamar menor. ‘Os anões mais novos não têm o sentimento de perda, pois nunca experimentaram a sensação de relevância que seus antecessores um dia tiveram’, disse um psicólogo estudioso do tema.

Os anões mais velhos que sobreviveram ao vício ainda lembram com nostalgia daqueles tempos, inesquecíveis:’Nunca fomos tão felizes. O difícil é ver seu destino determinado por gente que nunca soube o que é ser anâo’.

Aproveito essa ficção para retomar um assunto que apenas tangenciei em meu último texto sobre a China: democracia x falta de liberdade.

A China, como sabemos, tem um governo de partido único, autoritario e que cerceia fortemente a liberdade de expressão de seus cidadãos. Seus críticos se referem à ditadura chinesa em tom áspero e muitos alegam que a falta de democracia será um dos motivos de uma possível derrocada do gigante asiático no futuro.

Tenho sérias dúvidas a esse respeito. Quem pensa assim crê nos valores ocidentais como princípios inegociaveis de uma sociedade, fundamentados desde há muito tempo pela democracia. Em 4000 anos de registros históricos, nunca foi assim na China. Por que então devemos supor que o mais correto para os chineses é aquilo que entendemos melhor para nós e que a sua negação aos valores com os quais nos acostumamos seja sinônimo de equívoco?

Não estaría faltando uma certa dose de amplitude em nossa visão? Obviamente que eu, nascido e criado no ocidente, liberal por natureza, penso que a democracia e a liberdade de expressão são valores indispensáveis para uma sociedade civilizada, mas como posso refutar um pensamento distinto do meu, sem me colocar na posição antagônica?

Se os chineses não se importam em permanecer alheios à política e se derem por satisfeitos em focarem em seu crescimento profissional e sua vida familiar, em que medida isso pode ser considerado errado? Ouvi de uma colega de Hong Kong há alguns anos uma afirmação muito parecida com esse pensamento: ‘Não nos preocupamos com o governo, só queremos que eles nos deixem trabalhar’. É um conceito muito diferente do nosso, provavelmente incompatível nas bandas de cá, mas nem por isso inefetivo nas de lá.

O exemplo chinês, que resgato nesse momento pela proximidade com meu artigo anterior, é apenas um dentre vários casos em que a analogia com a história do arremesso de anões pode ser aplicada.

E você, já definiu o destino de algum anão?
Provavelmente sim. Todos fazemos. Vivemos em uma era altamente opinativa. Tempos de muita razão e pouca empatia…

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

Artigos relacionados

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo
Send this to a friend