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O “nada” que aterroriza

O ótimo O Homem Invisível abusa das tomadas nas quais coisa nenhuma se passa, mas nós prendemos a respiração assim mesmo

Seinfeld se gabava de ser “uma série sobre nada”. Um exagero: na verdade as tramas eram movimentadas e genialmente elaboradas. O sentido do slogan era que os enredos se baseavam no cotidiano trivial, como no episódio inteiro em que os personagens aguardavam mesa em um restaurante. Era incrível como dessas fontes banais, extraíam roteiros fechadinhos, criativos e hilariantes.

O que isso tem a ver com O Homem Invisível (2020)? Nada! Ou melhor, o nada, que é o que se vê nas cenas mais tensas desse excelente thriller, disponível no Now. Vislumbramos a mocinha em seu quarto, a câmera vai virando lentamente para o corredor e aquela visão – do quarto, do corredor, de outro cômodo e mais nada – faz nosso coração quase sair pela boca. Minha esposa até abandonou a sessão (no caso, virando-se de lado na cama e sacando o celular) pois já estava com taquicardia. Como isso acontece? É que o diretor, espertamente, usa e abusa do spoiler contido no título. Sabemos que há um homem invisível na parada e isso nos deixa petrificados.

O mestre Alfred Hitchcock dizia que esse era o segredo do suspense. Ele citava que, se dois personagens conversam em uma mesa e uma bomba de repente explode debaixo dela, temos um susto. Mas se o expectador vê essa bomba antes, enquanto os dois ainda conversam, temos um suspense. O Homem Invisível, para aplicar o ensinamento, toma uma decisão que traz um ângulo diferenciado comparado a outras adaptações do romance de 1897 de H.G. Wells.

Tanto no romance como nas ótimas adaptações de 1933 (um clássico de James Whale, na era de ouro de filmes de terror) e de 2000 (essa chamada O Homem sem Sombra (Hollow Man), com Kevin Bacon e Elizabeth Shue, dirigida pelo especialista em suspense psicológico Paul Verhoeven (de Instinto Selvagem e Elle)), o enfoque é no homem, no cientista. No começo, simpatizamos com sua ambição de conseguir o feito da invisibilidade. Porém, após obter êxito, esse poder mexe com ele, que vai ficando monstruoso. É muito interessante, brinca com nossos julgamentos. Mas esse de 2020, o foco passa a ser a esposa do (possível) vilão, vivida pela atriz Elizabeth Moss, em uma atuação magnífica que alguns até cogitam ser digna do próximo Oscar.

No início do filme, mal vemos o rosto do homem que, acreditamos, vai se tornar invisível. Começa com uma tensa tentativa da esposa de fugir de casa. Já percebemos que ele é um escroque, controlador e violento, o que também insere a obra no atual tema do abuso contra a mulher. Logo, ele é dado como morto e ela agora parece livre, leve e solta do pesadelo. Mas é aí que o bicho pega, e as tomadas de uma parede, de uma cozinha ou de uma estante no quarto, se tornam cenas de tirar o fôlego.

Esse tipo de artifício, de não mostrar o que aterroriza, não é novo. Na fase áurea de M. Night Shyamalan, como em Sinais (2002) e A Vila (2004), os vilões raramente são vistos, o terror se baseia quase que somente no medo em si. O cineasta, depois, força a barra em Fim dos Tempos (The Happening, 2008), onde o “monstro” é simplesmente uma leve brisa. Não deu, já não era mais um truque, era uma gambiarra! Em O Nevoeiro (The Mist, 2007), de Frank Darabont, baseado em Stephen King, há algo parecido, bem melhor e mais angustiante.

Steven Spielberg também fazia isso muito bem no início da carreira, como em Tubarão (1975), que aparecia bem pouco, até mesmo porque os orçamentos não permitiam mostrar efeitos especiais a toda hora. Depois ele retoma algo semelhante em alguns momentos de sua versão da obra do mesmo H.G. Wells, sobre invasão alienígena: A Guerra dos Mundos (2005). Durante a longa cena em que um avião desaba perto do porão escuro onde os personagens se escondem, vemos simplesmente uma tela escura; o terror vem todo dos efeitos sonoros caóticos.

Não é fácil fazer com que o “nada” aterrorize. Alguns filmes, como os da onda de “filmagem encontrada”, tipo A Bruxa de Blair (1999) se revelavam uma piada para alguns expectadores. Mas em O Homem Invisível, o diretor Leigh Whannell o faz muito bem. E, depois, seguindo o filme, ele aplica outro recurso fascinante: o da encruzilhada, da sinuca de bico. A protagonista se encontra em uma situação esdrúxula em que ninguém acredita nela, não vemos saída e a coisa só piora. Elizabeth Moss lembra, aqui, sua personagem na série distópica The Handsmaid Tale, sem um fiapo de esperança de sair daquele horror. O cineasta já havia escrito um dos grandes filmes nesse estilo, Jogos Mortais (Saw, 2004), sobre dois homens que acordam amarrados em um banheiro, na companhia de um corpo, sem saber o que aconteceu. Por mais que tentam sair daquela armadilha, eles não conseguem. Pena que esse longa se perpetuou em uma franquia com infinitas sequências que diluíram o seu impacto, porque eu curto muito o original!

            Outros bons filmes recentes usam essa tática de “situação mirabolante, claustrofóbica e aparentemente sem saída”: Enterrado Vivo (Burried, 2010), com o Ryan Reynolds, cujo título já expõe todo o imbróglio; Rua Cloverfield, 10 (2016), sobre garota que vai parar em um bunker, junto a um sujeito estranho, sem saber o que acontece do lado de fora; ou Um Lugar Silencioso (A Quiet Place, 2018), sobre família que tenta permanecer em silêncio em um mundo onde, a qualquer ruído, criaturas terríveis atacam. Uma sequência deste filme estava prontinha para estrear nos cinemas em março de 2020, mas foi para abril de 2021, devido a outro terror invisível e, dessa vez, real: a Covid-19.

            Enfim, aqui confesso que não sou fã de filmes de terror. No entanto, como vemos na lista acima, uma vez por ano aparecem thrillers que trabalham de forma impecável esses recursos de suspense em que eu me amarro: a situação inusitada sem saída e o… nada! E O Homem Invisível merece figurar, junto a Seinfeld, como um dos grandes empregos desse elemento, do nada! Qual será o próximo? Será que Jerry Seinfeld, que já se aventurou na animação (Bee Movie, 2007), se arriscaria em um thriller? Acho que não, né, mas pelo menos inusitado a enésima potência, isso seria!

O Homem Invisível (The Invisible Man, 2020) (Disponível no Now)
★ ★ ★ ★ ✩

Vladimir Batista

Vladimir Batista é escritor, professor e cinéfilo. Após 25 anos trabalhando como engenheiro em multinacionais de tecnologia, resolveu abraçar sua paixão de infância pelas palavras e por contar histórias e segue carreira na área de Letras e Literatura. Gosta de filmes e livros de gêneros variados, atendeu a vários cursos e oficinas de roteiros de cinema, de série e de técnicas de romance e tem um livro publicado pela Amazon: “O Amor na Nuvem De Magalhães”. Vladimir é casado, vegetariano e “pai” de cachorros resgatados.

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