De tarde, fui escrever: Sobre Memória, Indiferença e Paz.

1. A retirada do Brasil da Aliança Internacional em Memória do Holocausto (IHRA) fere profundamente valores e princípios humanistas universais. A IHRA é uma organização criada por dezenas de países para combater o antissemitismo e preservar a verdade histórica sobre o maior massacre do século XX. A responsabilidade com a educação, a lembrança das vítimas e o combate ao antissemitismo é um compromisso pessoal para mim. Lastimo que seja relegado no plano institucional.
2. Ressalto: o antissemitismo segue sendo crime, e a memória do Holocausto, uma obrigação moral.
3. Trata-se de uma decisão tomada por um governo. Respeito a Constituição e o regime democrático que o respalda. Nenhum governante, todavia, fala em meu nome. Espero que essa decisão seja revertida.
4. Expresso meu apoio e solidariedade às vítimas do Holocausto, aos sobreviventes que ainda estão entre nós e em memória dos que já se foram. O Holocausto é o genocídio mais amplamente documentado da história. Esquecê-lo é desonrar os que nele pereceram. Nunca mais é nunca mais. Não se pode esquecer isso.
5. O combate ao antissemitismo faz parte desse compromisso. Como lembrou o comissário da OEA para o Monitoramento e Combate ao Antissemitismo, Fernando Lottenberg no Poder360:
“A definição de antissemitismo da IHRA representa um importante instrumento que, apesar de não ter valor jurídico vinculante, é adotado por mais de 45 países e 2.000 instituições em todo o mundo para informar, identificar e combater o antissemitismo.” “O Brasil abriga a segunda maior comunidade judaica da América Latina. Estar integrado à IHRA representa um compromisso com a cultura de paz e com a promoção da educação, por meio da pesquisa e da lembrança do Holocausto – fundamentos que motivaram a criação da organização intergovernamental em 1998.”
6. Detalhe: a definição de antissemitismo adotada pelos governos do ocidente é a definição da IHRA. Terá sido essa a motivação brasileira, agora que resolveu aderir à insustentável acusação de genocídio capitaneada pela África do Sul? O Itamaraty não entrou em detalhes sobre a motivação, mas nega que a saída da aliança tenha uma relação direta com a adesão à ação.
7. Relembro: a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio define genocídio como atos cometidos com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Segundo a Corte Internacional de Justiça (CIJ), o limite legal para comprovação de genocídio é extremamente alto: a intenção precisa ser “demonstrada de forma convincente”, não basta “parecer”, como tem sido dito em artigos repercutidos na imprensa. Estudiosos sérios do genocídio reconhecem a dificuldade dessa prova e tratam o assunto com responsabilidade. A propósito: tanto a Irlanda quanto a Anistia Internacional já admitiram que a definição legal de intenção genocida não se aplica a Israel, e, por isso, voilà: sugerem que a lei seja alterada. Isso revela muito mais sobre seus objetivos do que sobre os fatos.
8. Todas as guerras são uma tragédia em si, e causam consequências humanitárias terríveis. Nem por isso podem ser rotuladas automaticamente como “genocídio” – especialmente quando há uma razão objetiva para a tragédia, como no caso de Gaza: o grupo terrorista Hamas, atuando como proxy dos ditadores fundamentalistas iranianos.
9. O padrão legal para genocídio não é atendido em Gaza, entre outras, dada a prática sistemática do Hamas de usar civis como escudos humanos e de operar dentro de infraestrutura civil. A acusação de genocídio contra Israel é insustentável juridicamente. Ao contrário do caso contra Vladimir Putin e Maria Lvova-Belova, no qual o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu um mandado de prisão por crimes de guerra relacionados ao sequestro e deportação ilegal de crianças ucranianas, no caso de Israel, em que se alega violação da Convenção do Genocídio, o processo iniciado pela África do Sul está em andamento, na fase inicial, na Corte Internacional de Justiça (CIJ). Seguirei acompanhando.
10. Ao acompanhar matérias sobre Gaza, é recorrente notar que dados usados por especialistas, da Al Jazeera à África do Sul, e que também batem ponto aqui no Brasil, são difundidos como verdade incontestável, valendo-se de veículos de imprensa e organizações internacionais que têm como fonte o Ministério da Saúde de Gaza, isto é, o Hamas. Em O Observador.PT:
“O mais revoltante é que, quando os delirantes números fabricados pelo Hamas chegam aos jornais europeus, não há qualquer aviso ou nota crítica. O “Ministério da Saúde de Gaza”, o Hamas, é citado como se fosse uma entidade neutra, credível e independente. É como se, nos anos 40, a imprensa ocidental publicasse comunicados do Ministério da Propaganda de Goebbels sem qualquer filtro. A diferença é que agora essa propaganda tem o selo azul da ONU e o carimbo de ONG’s como a Médicos Sem Fronteiras, cujos relatórios são baseados em “testemunhos” fornecidos pelo Hamas.”
11. Para mim, é óbvio que isso compromete qualquer conclusão com pretensão de verdade universal. A justificativa costuma ser a dificuldade de ter fontes confiáveis em terreno hostil e fechado. Mas, então, em quem confiar?
12. Já que até a ONU reconhece se valer dos números divulgados pelo Hamas, uma alternativa seria confiar nos dados da IDF (Forças de Defesa de Israel) ou dos Estados Unidos, que além de fornecerem suporte logístico e diplomático, prestam apoio humanitário direto, inclusive por meio da Gaza Humanitarian Foundation (GHF), que tem entregue toneladas de alimentos, diga-se, frequentemente atacados pelo próprio Hamas.
13. Deixo a questão a critério de cada um. Priorizo quem tem ido até Gaza, conferir a situação, in loco. Entre esses estão o Coronel Richard Kemp @celrichardkemp (CBE – Comandante da Ordem do Império Britânico, com três décadas de experiência no Exército Britânico no combate a terroristas e insurgentes). Ele foi até Gaza em junho e enviou informações sobre o trabalho que a Fundação Humanitária em Gaza (GHF) tem feito. Tenho acompanhado sua página no X. Ele também relatou parte da experiência aqui.
14. Ainda sugiro, a quem tiver interesse em aprofundar a questão, os últimos ensaios publicados por John Spencer (@SpencerGuard), figura proeminente em guerra urbana, autor de diversos livros no tema, e que esteve quatro vezes em Gaza após o 7 de outubro. No primeiro, publicado no Substack, ele expõe de forma objetiva por que não se trata de genocídio e trava o bom combate: não ataca o mensageiro, no caso o professor Omer Bartov, que acusa Israel em ensaio recente no NYT, sem, todavia, apresentar provas jurídicas compatíveis com o critério legal. O texto enfrenta e desmonta os argumentos um a um.
“Em seu artigo de opinião no New York Times intitulado “Eu sou um estudioso do genocídio. Eu sei quando vejo”, Omer Bartov acusou Israel de cometer genocídio em Gaza. Como professor de estudos de genocídio, ele deveria saber melhor. O genocídio não é definido por alguns comentários tirados do contexto, por estimativas de vítimas ou destruição, ou pela aparência da guerra nas manchetes ou nas mídias sociais. É definido pela intenção específica de destruir um grupo nacional, étnico, racial ou religioso no todo ou em parte. Essa é uma alta barreira legal. Bartov não o atendeu. Ele nem tentou.
Eu não sou advogado nem ativista político. Eu sou um especialista em guerra. Eu liderei soldados em combate. Eu treinei unidades militares em guerra urbana por décadas e estudei e ensinei história militar, estratégia e as leis da guerra por anos. Desde 7 de outubro, eu fui a Gaza quatro vezes integrado às Forças de Defesa de Israel. Eu entrevistei o Primeiro-Ministro de Israel, o Ministro da Defesa, o Chefe do Estado-Maior das IDF, a liderança do Comando Sul e dezenas de comandantes e soldados na linha de frente. Eu revisei suas ordens, observei seu processo de seleção de alvos e vi soldados assumirem riscos reais para evitar ferir civis. Nada do que vi ou estudei se assemelha a genocídio ou a intenção genocida.
Bartov afirma que cinco declarações de líderes israelenses provam a intenção genocida. Ele começa com o comentário do Primeiro-Ministro Netanyahu em 7 de outubro de que o Hamas pagaria um “grande preço”. Isso não é um chamado para genocídio. É o que qualquer líder diria após o pior ataque terrorista na história da nação. Ele também cita as declarações de Netanyahu de que o Hamas seria destruído e que civis deveriam evacuar zonas de combate. Isso não é uma evidência de um desejo de destruir um povo. É o que as forças armadas profissionais fazem ao combater um inimigo que se esconde entre civis. Bartov apresenta a referência de Netanyahu a “lembrar de Amaleque” como uma prova irrefutável. Mas essa é uma frase da história e tradição judaica. Ela está gravada no memorial do Holocausto de Israel, Yad Vashem, e também aparece no memorial do Holocausto em Haia. Em ambos os lugares, serve como um alerta para permanecer vigilante contra ameaças, não como um chamado para o assassinato em massa.
Ele também destaca o uso do termo “animais humanos” pelo Ministro da Defesa Gallant para descrever os combatentes do Hamas. Isso não é um crime de guerra. Após o massacre, o estupro e o sequestro de civis em 7 de outubro, muitos entenderiam ou até compartilhariam essa reação. Incapaz de encontrar intenção entre aqueles que realmente estão dirigindo a guerra, Bartov recorre a políticos de extrema-direita como Bezalel Smotrich e Nissim Vaturi. Esses indivíduos não comandam tropas, emitem ordens ou moldam decisões de campo de batalha. Eu estudei as ordens reais. Elas se concentram em destruir o Hamas, resgatar reféns e proteger civis sempre que possível. Sua retórica é irrelevante para o caso legal. (…)”
15. Em outro artigo, John Spencer argumenta que não há precedente histórico de um exército fornecendo o nível de ajuda direta a uma população inimiga em guerra como a conduzida pelas Forças de Defesa de Israel em Gaza. Ele também explica que muitas coisas podem ser verdade ao mesmo tempo:
“Inundar Gaza com ajuda humanitária é o certo, é uma ação moral. Um exército deve equilibrar seus objetivos operacionais com imperativos humanitários, incluindo a prevenção da fome e a proteção da vida civil. Um exército pode restringir o fluxo de suprimentos humanitários se o inimigo estiver desviando esses recursos para seus próprios fins. E também é verdade que populações civis são rotineiramente retiradas de zonas de combate para reduzir danos e garantir uma entrega mais eficaz de assistência humanitária. Essas são todas verdades básicas da guerra, bem estabelecidas tanto na prática militar quanto no direito internacional.”
“Na Segunda Guerra Mundial, os Aliados não forneceram ajuda a civis alemães ou japoneses enquanto esses governos ainda lutavam e controlavam seu território. No Vietnã, os Estados Unidos nunca entregaram assistência humanitária às áreas controladas pelo Vietnã do Norte ou pelo Vietcongue. Mesmo durante as batalhas contra o ISIS no Iraque e na Síria, as forças apoiadas pelos EUA só facilitaram a ajuda depois de limpar o território, não enquanto o ISIS ainda o controlava. Mas Israel está fazendo o que nenhum exército fez. Está facilitando ajuda humanitária direta à população de um território governado por um exército terrorista com o qual ainda está em combate urbano próximo. Reconheça-se isso ou não pela comunidade internacional, é um fato histórico inédito.”
16. Lembro que o artigo 23 da Convenção de Genebra explica a obrigação que os países envolvidos em conflito devem ter: permitir a passagem livre de suprimentos médicos, hospitalares, itens religiosos, alimentos e roupas destinados exclusivamente a civis do lado adversário, incluindo crianças, gestantes e mães. Atente-se, todavia, que o mesmo dispositivo diz que essa obrigação pode ser restringida se houver razões sérias para acreditar que esses suprimentos serão desviados, que não haverá controle efetivo, ou que isso traria uma vantagem militar ou econômica ao inimigo. É exatamente o que vem sendo reiteradamente denunciado em Gaza, o desvio de alimentos pelo Hamas, entre outras, para oferecer ao grupo terrorista uma fonte de financiamento com a revenda desses alimentos por preços exorbitantes.
17. Spencer prossegue destacando outra anomalia produzida nesta guerra que deveria preocupar profundamente qualquer pessoa que se importe com normas humanitárias.
“Não há precedente histórico de uma parte não envolvida na guerra, com a capacidade exclusiva de ajudar, como o Egito, não permitir que civis fujam de uma zona de guerra. (…) Em quase todas as outras guerras modernas, países neutros abriram suas fronteiras para civis em busca de segurança. A Polônia fez isso durante a guerra na Ucrânia. Jordânia e Turquia acolheram milhões durante a guerra civil síria. Tanzânia e Congo (então chamado Zaire) aceitaram refugiados durante o genocídio em Ruanda. O Egito faz o oposto. Mantém a fronteira fechada e deixa civis presos, enquanto o mundo culpa Israel pelo que acontece dentro de Gaza. Isso também não tem precedente.”
18. Já no ensaio intitulado “Quais são as escolhas de Israel em Gaza? A insanidade dos duplos padrões e da análise desinformada“, Spencer analisa os objetivos de Israel na guerra contra o Hamas, desde 8 de outubro: resgatar todos os reféns, desmantelar as capacidades militares e o domínio político do Hamas, e garantir que Gaza não volte a ameaçar Israel. Ele lembra que esses objetivos são legítimos sob o direito internacional. Israel age em legítima defesa conforme previsto na Carta da ONU, art. 51. E chama atenção para diversos padrões duplos aplicados à conduta de Israel, que não são exigidos de outros países em guerra.
19. Acrescento o questionamento feito semana passada pelo jornalista Jotam Confino (@mrconfino), correspondente no Oriente Médio para o Telegraph, BBC World, CBS News e USA Today e autor do livro “Israel de Netanyahu: A Ascensão da Extrema Direita”:
“Hoje, fui ao lado de Gaza, na fronteira de Kerem Shalom, para ver pessoalmente os quase 1.000 caminhões de ajuda humanitária aguardando para serem recolhidos pela ONU. Uma quantidade absurda de ajuda humanitária que está esperando para ser recolhida no lado de Gaza da fronteira com Israel. São 950 caminhões, para ser exato! Por que as ONGs internacionais não estão recolhendo essa ajuda quando alertam – todos os dias – sobre a fome em Gaza?”
20. Para Confino, em outra postagem, a verdade está no meio: reconhece a burocracia das IDF para autorizações, mas aponta que a ONU tem parte da culpa ao recusar escoltas oferecidas pelas IDF e pela GHF. Ele observa que, desde que Israel publicou fotos da ajuda acumulada, a ONU repentinamente recolheu cerca de 270 caminhões nas últimas 48 horas. “Obviamente, não parecia nada bom que tanta ajuda emergencial estivesse esperando a ONU recebê-la.”. “Embora a ONU informe diariamente sobre crianças famintas, eles não têm problema em ignorar os pedidos do GHF para realmente lhes dar a segurança e a proteção que exigem.“
“Temos o que considero uma situação complexa, na qual várias pessoas cometeram erros. É muito mais complexa do que muitos meios de comunicação dinamarqueses e internacionais tentam retratar, onde Israel é o culpado por 100% do caos e da miséria que prevalecem em Gaza. E eu nem mencionei o Hamas em tudo isso. Eles matam e espancam civis palestinos que “colaboram” com o GHF ou Israel. Eles fazem tudo o que podem para sabotar o trabalho do GHF, todos os dias. Ninguém fala sobre isso, porque não interessa à mídia quando não se pode culpar Israel”.
21. Andrew Fox, ex-oficial do Exército Britânico e professor sênior na Academia Militar Real de Sandhurst, visitou centros de distribuição de ajuda em Rafah. Ele relata que a questão central não é a falta de alimentos enviados para Gaza, mas a dificuldade na distribuição. O acesso dos civis à ajuda é prejudicado pelo colapso dos sistemas da ONU, apreensão e bloqueios do Hamas, roubo por grupos armados locais e exclusão de grupos vulneráveis. Fox reconhece que o modelo da GHF é imperfeito, mas questiona: “É melhor garantir comida protegida por guardas ou permitir que ela seja sistematicamente desviada?”
22. Tudo isso me traz a um dos objetivos do texto: um alerta sobre as consequências da banalização e indevida manipulação de termos como “genocídio”. O artigo de opinião de Bret Stephens, publicado no NYT, “No, Israel is Not Committing Genocide in Gaza” traz a seguinte conclusão:
“(…) Alguns leitores podem dizer que, mesmo que a guerra em Gaza não seja um genocídio, ela já dura há muito tempo e precisa acabar. Esse é um ponto de vista justo, compartilhado pela maioria dos israelenses . Então, por que a discussão sobre a palavra “genocídio” importa? Por dois motivos.Em primeiro lugar, embora alguns especialistas e acadêmicos possam acreditar sinceramente na acusação de genocídio, ela também é usada por anti-sionistas e antissemitas para equiparar o Israel moderno à Alemanha nazista. O efeito é permitir uma nova onda de ódio aos judeus, gerando inimizade não apenas contra o governo israelense, mas também contra qualquer judeu que apoie Israel como um defensor do genocídio. É uma tática que os que odeiam Israel têm usado há anos com acusações infladas ou falsas de massacres ou crimes de guerra israelenses que, em uma análise mais aprofundada, não eram. A acusação de genocídio é mais do mesmo, mas com efeitos mais mortais .Em segundo lugar, se genocídio — uma palavra cunhada apenas na década de 1940 — deve manter seu status de crime singularmente horrível, então o termo não pode ser aplicado indiscriminadamente a qualquer situação militar que não gostemos. Guerras já são terríveis o suficiente. Mas o abuso do termo “genocídio” corre o risco de, em última análise, nos cegar para as guerras reais quando elas se desenrolam.A guerra em Gaza deve ser encerrada de forma a garantir que nunca mais se repita. Chamá-la de genocídio não contribui em nada para esse objetivo, exceto para diluir o significado de uma palavra que não podemos nos dar ao luxo de depreciar.”
23. Norman J.W. Goda, professor titular da cátedra, Norman e Irma Braman de Estudos do Holocausto na Universidade da Flórida e Jeffrey Herf, autor de “Three Faces of Antissemitismo: Direita, Esquerda e Islamista”, professor emérito de história na Universidade de Maryland, em artigo no Washington Post, trazem a seguinte advertência final:
“(…) A pergunta que se impõe é: as acusações atuais são antissemitas? (…) Como historiadores, concluímos com uma nota de advertência. Hoje, ninguém tem um número exato de quantas pessoas morreram nesta guerra, quantas mortes foram de combatentes do Hamas e quantas de civis de Gaza. A imprensa mundial repete prontamente os números de baixas e as previsões de fome feitas pelo Ministério da Saúde de Gaza. Ela precisa praticar mais humildade e ceticismo. Não há razão para considerar uma entidade controlada pelo Hamas como uma fonte confiável sobre os eventos em andamento, especialmente porque o Hamas tem usado, há anos, as baixas civis que seu modo de guerra provoca como um elemento central de sua guerra política contra Israel. Historiadores, jornalistas e governos devem encarar com grande ceticismo cada afirmação desta organização terrorista orgulhosamente antissemita, e também devem dar peso às afirmações do governo de Israel, que, ao contrário do Hamas, precisa enfrentar uma oposição política e uma imprensa livre. Isso não significa negar que esta guerra trouxe enorme sofrimento ao povo de Gaza. Mas a causa central desse sofrimento é a guerra que o Hamas iniciou e, como Tal Becker observou há 18 meses, se recusa a terminar.”
24. Certo é: análises sérias, especialmente quando envolvem uma acusação tão grave como o crime de genocídio, termo que jamais pode ser banalizado, exigem seriedade na fonte. Sem meias palavras: jamais usarei como fonte primária um grupo terrorista. O terrorismo é injustificável. Nunca pode ser considerado uma ferramenta legítima para alcançar objetivos políticos. Ensaios e postagens com essa linha distorcida são fruto de anos de doutrinação desumanizada. Mais um desserviço da academia e de redações povoadas por militantes travestidos de acadêmicos, especialistas e jornalistas. O terrorismo é uma forma de desumanização, um ato que nega a dignidade da pessoa humana e que sempre se volta contra a ideia de justiça que pretende defender. Ponto.
25. Acredito, entretanto, na preocupação legítima com o sofrimento de crianças em todas as situações de guerra, não é diferente em Gaza. Chamadas emotivas, todavia, muitas vezes acompanhadas de fotos de crianças que sequer estão em Gaza, não ajudam a compreender nem a resolver o drama real da região. Ao contrário, muitas vezes servem ao propósito dos maiores responsáveis por esse caos humanitário. O que dizer da foto do pequeno Osama al-Rakab, de 5 anos, que viralizou nas redes sociais, usada falsamente para culpar Israel por sua condição e alegar que Israel está deixando crianças passarem fome? A criança sofre de uma grave doença genética, sem relação com a guerra. A página da embaixada de Israel no Brasil informou que no dia 12 de junho Israel coordenou a saída de Osama al-Rakab da Faixa de Gaza, com sua mãe e irmão, e, atualmente, ele está recebendo tratamento na Itália.
26. Na mesma semana, veio à tona o caso de Mohammad al-Mutawaq, com cerca de 18 (dezoito) meses, cuja foto também impactante, mostrando uma criança com ossos aparentes, estampou a capa do famoso jornal The New York Times (NYT), e foi repercutida por outros veículos jornalísticos. A foto também foi usada para ilustrar a fome generalizada em Gaza, sem mencionar que o menino sofre de problemas de saúde anteriores à guerra, conforme noticiado no The Jerusalem Post. Como acreditar que os responsáveis por essa publicação de capa desconheciam a condição de saúde da criança? E mais: após diversas publicações nas redes sociais expondo a verdade sobre o quadro de saúde da criança, o NYT publicou uma declaração sucinta no perfil X da sua conta de relações públicas, com cerca de 89.000 seguidores, e não na conta principal do NYC, no X, que tem 55 milhões. Quantos tiveram acesso à verdade dos fatos corrigidos?
27. Repito: a espetacularização do sofrimento humano não ajuda a diminuí-lo, e sim serve ao propósito de quem iniciou esse conflito, o Hamas. No caso da exploração das imagens de crianças, emoções são manipuladas com o fim de responsabilizar integralmente Israel e gerar pressão internacional. O Hamas sabidamente usou escolas e hospitais para sua estratégia de guerra, civis como escudos humanos, maximizando as perdas. O uso de munição midiática ficou claro desde a exposição pelos próprios terroristas das atrocidades daquele 7 de outubro gravadas com um objetivo claro: obter apoio emocional e político dos chamados “idiotas úteis”, mobilizando medo e dor como propaganda. No dia seguinte, seus apoiadores estavam nas ruas da Europa e nas redes sociais servindo a esse propósito. Assustador.
28. Decapitações, estupros de mulheres a ponto de seus ossos serem quebrados. Sequestros e assassinatos até bebês. Como esquecer o que aconteceu com a família Bibas e tantas outras? Sim, eu relembro todos esses fatos amplamente noticiados. Porque mais importante do que saber de que lado está, é saber quem alimenta essa espiral de ódio tribal, e é a antítese dos melhores valores que a humanidade já produziu.
29. Some-se a isso, a espetacularização do sofrimento dos reféns exposta sem qualquer pudor essa semana em vídeos do Hamas espalhados nas redes sociais. Entendo a divulgação dessas imagens nas páginas que apoiam a comunidade judaica e israelense nesse momento, mas não trarei as imagens dessas pessoas expostas em condições desumanas no cárcere, pois li que as famílias pediram que seus entes queridos não fossem expostos nessas condições. Não consigo permanecer um segundo nessa dor, não vou questionar essa decisão.
30. Com pesar, me volto para a lembrança de imagens do Holocausto e percebo uma semelhança perturbadora com as imagens divulgadas dos reféns emaciados, mas com uma diferença brutal na atual exposição. Durante o Holocausto, os nazistas documentavam, mas escondiam seus crimes por saberem que eram moralmente indefensáveis. Agora, somos confrontados no século XXI com uma exibição deliberada. As imagens de reféns em condições degradantes são divulgadas como instrumento de terror psicológico, normalização do inaceitável e, atenção, novamente, mobilização de apoiadores.
31. É perturbador: a espetacularização opera sob a premissa de que o sofrimento visível de judeus, em corpos esqueléticos em similitude com as vítimas do Holocausto, é um trunfo. A desumanização pública serve como demonstração de poder. Seres humanos – que até o presente momento não receberam qualquer ajuda humanitária (!) – são expostos como “troféus” de guerra.
32. Queiramos ou não: somos testemunhas de uma inversão histórica impensável, até bem pouco tempo, não poderemos alegar ignorância. Enquanto os nazistas usavam eufemismos (“Solução Final”), destruíam evidências, e operavam em campos de concentração longe dos olhos públicos, seres humanos são agora exibidos no cárcere em tempo real, usando as redes sociais como amplificador. A exposição deliberada de imagens que evocam o Holocausto não se dá como memória do horror a ser evitado, o “Nunca Mais”, tantas vezes repetido. É a weaponização, um processo de transformar vulnerabilidades em armas digitais, da memória traumática judaica.
33. O sofrimento humano transformado em commodity política, profanando não apenas as vítimas atuais, mas também a memória histórica.
34. Tamanha exibição do sofrimento, com a certeza da impunidade e do silêncio seletivo, toda essa assimetria de indignação (seletiva) e cobertura midiática deveria assustar a todos nós.
35. No ponto, transcrevo a postagem de Elica Le Bon, advogada, palestrante, ativista iraniano-americana (@elicalebon):
“Você sabe por que o Hamas escolheu esse momento para divulgar imagens de Evyatar David parecendo emaciado? Para provar que eles são donos de você. Eles estão provando que, enquanto o mundo grita dos telhados sobre a fome, eles podem mostrar a você a forma mais cruel de fome internacional em cativeiro implacável e ninguém vai pestanejar. O NY Times não vai publicar sobre isso. A Time Magazine não vai fazer uma matéria sobre isso. O Washington Post não vai dedicar seu feed a isso. O New Yorker não vai publicar uma polêmica sobre isso. Suas ONGs não vão declarar crimes de guerra por isso. Suas Nações Unidas não vão efetuar prisões. Seus estudantes não vão quebrar janelas. Seus ativistas não vão às ruas. Seus políticos não vão murmurar uma palavra. Seus intelectos vão chamar isso de resistência, e os corações sangrentos vão misteriosamente secar.
Eles estão se gabando de que o que está por trás da hipocrisia é sua dominação ideológica. O objetivo de distorcer nossas visões de mundo em favor deles, bem como desumanizar completa e completamente judeus e israelenses, foi alcançado. (…)”
36. Confesso que não quero crer que foi alcançado. Seria uma derrota muito difícil de aceitar. Estou justamente fazendo agora uma especialização em direitos humanos. Não pode haver tamanha seletividade em valores universais baseados em premissas éticas, morais, humanísticas. Até para a loucura coletiva é preciso limite. Não podemos falhar novamente, após todas as dolorosas lições que o Holocausto nos legou. Memória importa.

37. Enfatizo: criticar todas essas distorções e defender a verdade histórica não significa apoiar incondicionalmente qualquer governo. A memória do Holocausto e o combate ao antissemitismo transcendem políticas partidárias ou governamentais. São compromissos com a dignidade humana e com a verdade.
38. Nada disso tem a ver com ser contra ou a favor do governo israelense.
39. A propósito, vi, novamente, hoje, imagens de uma manifestação gigantesca de oposicionistas ao governo israelense. Sessenta mil pessoas exigindo o retorno dos reféns. Onde mais isso é possível no Oriente Médio? Somente onde há democracia, liberdade, forças tão divergentes possuem espaço para coexistir com opiniões e correntes políticas tão diversas: eis Israel.
40. Encerro com um fio de esperança no horizonte. Em um momento histórico, a liga árabe, em uma iniciativa da Arábia Saudita, se somou ao pedido de dezenas de países, incluindo o Brasil, para que o Hamas se desarme e deixe de controlar a Faixa de Gaza. A Declaração de Nova York foi distribuída entre os Estados-membros da ONU, que têm até setembro para endossá-lo antes da Assembleia Geral. O objetivo é relançar a solução de dois Estados para Israel e os palestinos e encerrar um conflito de mais de sete décadas. A Declaração de Nova York não é vinculativa, mas é importante: condena o massacre de 7 de outubro, pede a libertação de todos os reféns e exige que o Hamas seja desarmado e removido do poder em Gaza. Todos que querem paz, e neles eu me incluo, deveriam ter em perspectiva que qualquer solução para a paz não será alcançada enquanto o Hamas ainda estiver no poder, enquanto sua estratégia for validada.
41. Não se pode premiar o terror do 7 de outubro com um Estado, sem impor condições ao Hamas como fez o Presidente da França e ameaçou fazer o Primeiro Ministro do Reino Unido. Independente das questões morais envolvidas na análise dessa escolha política. Trata-se da Teoria dos jogos. Ao invés de uma recompensa (como o reconhecimento ao Hamas de um Estado sob o seu controle), é preciso exigir uma mudança de comportamento, indicando um “caminho de saída” para a paz que não inclui o Hamas com e no poder. Premiar as ações do Hamas com ganhos políticos ou territoriais fortalece sua estratégia, incentiva a perpetuação de táticas semelhantes no futuro e prolonga o drama humanitário para os civis não combatentes e os reféns em Gaza. A Declaração dá um passo, e com países árabes da região, para desincentivar essa estratégia, pressionando quem causou esse conflito.
42. Desejo um futuro compartilhado para israelenses e palestinos, e o pedido de rendição do Hamas liderado pela Liga Árabe me parece uma iniciativa a ser fortalecida e ecoada. Nada disso isenta Israel de sua responsabilidade humanitária, mas ajuda a esclarecer por que o conflito se perpetua e ajuda na solução para uma saída, pressionando quem, além de direcionar tanta energia e recursos para uma cidade subterrânea voltada para a Guerra, para a morte, com os crimes praticados naquele 7 de outubro, é o responsável por desencadear a resposta de Israel e toda essa crise humanitária em Gaza, e é um empecilho para uma solução pacífica. Registros factuais da verdade importam.
43. Como bem lembrou em sua página David M Friedman, que serviu como Embaixador americano em Israel (2017-2021):
“Um dia, não muito distante, os historiadores perguntarão por que o Hamas se manteve entrincheirado por tanto tempo, infligindo dor indizível até mesmo ao seu próprio povo. O consenso surgirá da evidência histórica de que foi devido ao incentivo e à simpatia equivocada que o Hamas recebeu do Ocidente: nas ruas, na academia, na mídia e nos corredores do governo em lugares como Canadá, Europa Ocidental e Austrália, e daqueles que erroneamente atribuíram a Israel a culpa por todas as baixas civis. São eles, com sangue nas mãos, que prolongaram o cativeiro dos reféns e o sofrimento daqueles em Gaza”.
44. Que haja paz em Jerusalém e em toda parte. Quando? Não faço ideia. Sei apenas que nunca devemos desistir de persegui-la. E não haverá paz sem o retorno dos reféns. Como relembrou @oyveygram em sua página, de onde trouxe a imagem com a arte de @michalherrmann que ilustra esse artigo: Nunca mais é uma PROMESSA. LIBERTEM OS REFÉNS. 🎗️
Brasil, 2 de agosto de 2025.

P.S. Assim Kafka, nascido em Praga, em uma família de judeus asquenazes, registrou em seu diário o início de uma guerra cujos desdobramentos poucas décadas depois levariam ao horror do Holocausto. Uma constatação da impotência do indíviduo. Voltou-se para sua vida privada. Tudo mais estava fora de seu controle. A kilômetros de distância desse conflito, enquanto escrevia, 111 anos depois, sobre a memória sendo apagada e seres humanos novamente desumanizados, agora exibidos como troféus, me pergunto: quais registros restarão em nós?