Política

Israel e a ONU – Cap. 1: Os países mais e menos alinhados a Israel

Na mesma entrevista coletiva em que Lula comparou a ação do exército israelense com o holocausto perpetrado pelos nazistas, o presidente brasileiro sentiu-se à vontade para dar um puxão de orelhas no governo de Israel. Segundo Lula, “Tel-Aviv não obedece a nenhuma decisão da ONU”, o que seria prova de uma insubordinação inaceitável.

A Organização das Nações Unidas possui essa aura de instância máxima da moralidade global. Construída sobre os escombros da 2ª Guerra Mundial, a ONU pretende ser “um lugar onde as nações do mundo podem se reunir, discutir problemas comuns e encontrar soluções compartilhadas”, missão esta escrita no site da instituição. Obviamente, entre o desejo e a realidade vai uma longa distância. Os interesses dos países são diversos e, muitas vezes, inconciliáveis. No final do dia, vale a influência dos países mais poderosos no Conselho de Segurança, e os votos da maioria dos Estados-membros na Assembleia Geral. Então, para que serve a ONU?

A ONU se pronuncia basicamente através de suas resoluções. Estas resoluções são votadas e aprovadas pelos seus países-membros. Assim, as “decisões” da ONU, como se referiu o nosso presidente às suas resoluções, são tão boas quanto forem bons aqueles que votam. E esse é um ponto fundamental: as resoluções da ONU dependem do perfil dos membros da ONU. E esse perfil mudou bastante ao longo dos anos, pelo simples fato de que o número de membros aumentou de maneira relevante desde a fundação da instituição. Daquele primeiro núcleo formado por uma parcela relevante de democracias liberais, a ONU se expandiu incorporando principalmente países com, digamos, uma governança mais problemática. É o que podemos observar no gráfico a seguir:

Em 1946, ano de sua fundação, a ONU contava com 53 países-membros, dos quais 32% eram países considerados democráticos[1]. Hoje, temos 193 países-membros, dos quais apenas 18% são considerados países democráticos. Isso certamente tem algum efeito sobre as votações das resoluções da ONU.

As resoluções envolvendo Israel e a questão da Palestina

Desde a resolução 181, de 29/11/1947, que estabeleceu os estados judeu e árabe no antigo território do mandato britânico na Palestina, foram 939 resoluções levadas a voto que envolveram, de alguma forma, Israel e a questão da Palestina. No gráfico a seguir, podemos observar o número de votações por ano:

Observe como, até 1967, Israel e a Palestina eram um não-assunto na ONU. A partir da Guerra dos Seis Dias e, principalmente, ao longo da década de 70, o número de votações começa a aumentar, para explodir na década de 80, coincidentemente ou não, após a assinatura do acordo de paz entre Israel e Egito, em Camp David. O número de votações só começará a diminuir após a assinatura dos acordos de Oslo entre Israel e a OLP, e diminuirá ainda mais a partir de meados dos anos 2000, quando Israel retira os assentamentos de Gaza. Mais recentemente, a partir de 2017, temos um leve aumento do número de resoluções, mas nada que se compare ao período entre 1980-2005.

Ainda no campo das estatísticas gerais, vejamos o grau de aderência geral das votações aos posicionamentos de Israel. No gráfico a seguir, mostramos um histograma com a frequência dos votos contrários a Israel em todo o período:

Este gráfico se lê da seguinte forma: em 13% das votações, o número de países que votaram contra Israel ficou entre 90% e 100% do total, em 33% das votações, o número de países que votaram contra Israel foi de 80% a 90% do total, e assim por diante. Podemos observar que, em cerca de 71% (25% + 33% + 13%) das votações, mais de 70% dos países votaram contra Israel. Esta é a norma. Ao longo dos próximos capítulos, classificaremos as votações em “apoio forte” quando a resolução receber apoio (contra Israel) de mais de 80% dos países, “apoio médio”, quando a resolução receber apoio entre 70% e 80% dos países, e “apoio fraco”, quando a resolução receber apoio de menos do que 70% dos países. A norma é que, nessas resoluções com “apoio fraco”, são os países democráticos que não acompanham a maioria.

E como os países, de maneira geral, se posicionaram em relação a Israel nessas resoluções? Para medir o grau de aderência a Israel (que chamaremos de “israelômetro”), vamos somar o número de votos a favor de Israel, subtrair o número de votos contra Israel, e dividir pelo total de votações das quais aquele país participou. Por exemplo, a Itália participou de 903 votações sobre a questão palestina, das quais em 540 votou contra Israel, em 80 votou a favor e em 283 se absteve ou simplesmente deixou de votar. Assim, o “israelômetro” da Itália é (80 – 540)/903 = -50,9%. Consideramos o número total de votações desde 1961, quando os arquivos da ONU abrem, de maneira mais regular, a lista de países e seus respectivos votos.

Na tabela a seguir, trazemos todos os países e o seus respectivos “israelômetros”, considerando todo o período de 1961 a 2023. Em azul, temos os países democráticos ocidentais (mais ricos), em verde os países com maioria muçulmana, em preto os países da África sem maioria muçulmana e em vermelho os países da antiga Cortina de Ferro ou que ainda são socialistas. Esta divisão, principalmente no que se refere aos países democráticos e aos países muçulmanos é autoexplicativa: observe que há uma mancha azul à direita e uma mancha verde à esquerda, indicando claramente uma tendência. Os países africanos tendem a ficar mais à esquerda, mas há uma maior dispersão, provavelmente em função das particularidades políticas de cada um. Por fim, os países da antiga Cortina de Ferro merecem uma explicação à parte, que faremos a seguir. Antes, porém, vamos analisar os números em si.

Sabemos que os Estados Unidos são, de longe, o país mais alinhado a Israel. Mas o “israelômetro” quantifica esse alinhamento: de 902 votações de que os EUA participaram desde 1961, o país votou alinhado a Israel em nada menos do que 733, e contra em apenas 57, resultando em um “israelômetro” de 74,9%.

Junto com os Estados Unidos, apenas pequenas ilhas no Pacífico que dependem, em grande parte, dos EUA, apresentam “israelômetros” positivos. O restante dos países tem “israelômetros” negativos, o que significa que, em grande parte do tempo, os países votam contra os interesses de Israel na ONU. Mas, como já falamos, é preciso fazer uma espécie de hierarquia entre as resoluções. Há algumas que são inócuas, enquanto outras tocam em pontos fundamentais. É este tipo de distinção que desenvolveremos nos próximos capítulos.

Vamos agora aprofundar um pouco mais a respeito das tendências dos países em relação à Israel ao longo do tempo. O “israelômetro” da tabela acima considera o período todo de 1961-2023, mas a adesão ou rejeição dos países a Israel mudou ao longo do tempo. Primeiramente, vamos ver como a votação média evoluiu ao longo do tempo:

Começamos a série em 1970 porque, como vimos, é somente a partir da década de 70 que o número de resoluções a respeito desse tema se multiplica, e então temos uma quantidade suficiente para fazer estatísticas. Além disso, antes da década de 70 são poucas as resoluções em que o arquivo da ONU abre como foram as votações dos países.

Observe como, em grande parte do tempo, o “israelômetro” oscila em torno de -80%, um número, sem sombra de dúvidas, muito negativo. Somente entre 1970 e 1972 o índice fica entre -40% e -60%, apoio equivalente ao dos países europeus ocidentais hoje. Provavelmente, o apoio a Israel nos anos anteriores a 1970 era superior. Ou seja, houve uma degradação do apoio a Israel a partir da década de 70, principalmente depois da Guerra do Yom Kippur. Os motivos dessa deterioração serão investigados nos capítulos seguintes.

Agora, vejamos o comportamento de alguns países em particular. Comecemos por alguns países da antiga Cortina de Ferro, conforme havíamos comentado acima. Observe o gráfico a seguir:

Observe como, antes de 1990, esses países votavam unanimemente contra Israel. Tratava-se, obviamente, de uma agenda antiamericana, influenciada pela Guerra Fria. Depois da queda do Muro de Berlim, a coisa muda de figura. Todos os países, incluindo a Rússia, se não passam a apoiar Israel, pelo menos têm um comportamento mais próximo de seus pares europeus ocidentais. A Rússia, no entanto, a partir dos anos 2000, com a chegada de Putin ao poder, volta a ser um país consistentemente contra Israel, com índices próximos de -80% ou pior. Os outros países mantêm-se com o “israelômetro” entre -75% e -60%. Mais recentemente, a Hungria vem se destacando como um dos países europeus que mais tem apoiado Israel, com o índice chegando a zero em 2022 e 2023.

Agora vamos destacar outro grupo, bem mais importante: o Conselho de Segurança da ONU, formado por Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França e China:

Temos dois extremos: de um lado, a China, que vota consistentemente contra Israel (“israelômetro” de -100% na maior parte do tempo), e Estados Unidos, que consistentemente vota com Israel (“israelômetro” de 100% entre 2006 e 2020, e acima de 80% desde 1994). No meio, temos Reino Unido e França, que têm um apoio entre -80% e -60% a partir dos anos 2000, e Rússia, que tem um índice mais próximo de -80%. Podemos observar uma divergência mais recente entre França e Reino Unido, com a primeira se aproximando dos índices da Rússia e o segundo aumentando o seu apoio a Israel nos últimos 3 anos.

Uma curiosidade é que Estados Unidos, França e Reino Unido tinham “israelômetros” mais próximos entre si na década de 70, mas foram se afastando a partir da década de 80, com os Estados Unidos aumentando o seu apoio e França e Reino Unido diminuindo este apoio. Não vou aqui arriscar uma explicação para este fenômeno, talvez tenha a ver com o isolamento crescente de Israel no cenário global (veremos isso mais adiante), o que levou os Estados Unidos a intensificarem o seu apoio.

E o Brasil?

No gráfico a seguir, mostramos o “israelômetro” dos principais países da América Latina.

Podemos observar que, com algumas exceções, o “israelômetro” dos países da AL permanece, grande parte tempo, entre -80% e -100%. As exceções ocorrem mais no início da década de 70, na Argentina na primeira metade da década de 90, no México entre 2017 e 2020 e no Brasil durante o governo Bolsonaro, quando o “israelômetro” chegou a ficar levemente positivo.

O Brasil tem um “israelômetro” consistentemente baixo desde meados da década de 70, o que engloba governos da ditadura militar, da “Nova República”, do PSDB e do PT. Ou seja, com exceção de Bolsonaro, a posição do Brasil foi sempre bastante antagônica a Israel, independentemente da coloração partidária do governo. Ao longo deste trabalho, veremos que o Brasil quase sempre votou contra Israel em resoluções-chave.


[1] Para a avaliação dos países considerados democráticos, utilizei o Economist Democracy Index de 2022, selecionando os países com nota igual ou superior a 7,5, resultando em um total de 36 países. Obviamente, os países podem mudar ao longo do tempo, e países hoje democráticos não o eram no passado, e vice-versa. É o caso, por exemplo, da Coreia do Sul, que melhorou o seu índice de democracia ao longo do tempo. Mas, de maneira geral, os países mantêm mais ou menos constante o seu índice de democracia ao longo do tempo, o que torna razoável a utilização dessa medida.


Confira os artigos desta série:

1.       Visão geral das votações – o grau de alinhamento dos países a Israel

2.       O direito de regresso dos palestinos

3.       Os direitos inalienáveis dos palestinos

4.       A propaganda é a alma do negócio

5.       A UNRWA

6.       Israel, de amante da paz a pária internacional

7.       A condenação ao terrorismo

8.       A OLP e o Estado Palestino

9.       Jerusalém

10.   A busca pela paz

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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