Opinião

A cruzada pela liberdade de expressão

Antes de analisar a mensagem de ontem de Mark Zuckerberg, gostaria de remeter a dois artigos de mais fôlego, que escrevi ainda no calor da invasão do Capitólio: Redes sociais e o poder político e Em busca do censor ideal. Nesses dois artigos, faço uma abordagem mais teórica sobre o tema, o que vai me poupar algumas linhas e me permitirá concentrar nas consequências práticas da mensagem.

Em primeiro lugar, Zucka parece ter se “rendido” a pressões do presidente eleito, Donald Trump, conforme manchete do Estadão de hoje. Esta é uma visão toscamente primitiva, que divide o mundo entre “bons” e “maus”, ignorando as muitas e diversas nuances da questão.

Logo no início de sua mensagem, Zuckerberg faz menção a um discurso que fez na Universidade de Georgetown, em outubro de 2019. Essa menção, apesar de esquecida por todas as manchetes e análises que você lerá, é fundamental. A íntegra do discurso está aqui. Já no final desse discurso, em que Zuckerberg visita todos os meandros que fazem da censura nas redes algo tremendamente difícil (convém lembrar que se trata da pessoa que precisa desenhar os sistemas para tal, ou seja, precisa sair do mundo das ideias para entrar na rugosidade do empírico), o criador do Facebook expõe o seu próprio ponto de vista a respeito do problema. Transcrevo:

“Cada vez mais, vemos pessoas tentando definir mais discursos como perigosos porque podem levar a resultados políticos que consideram inaceitáveis. Alguns defendem a opinião de que, como os riscos são tão altos, não podem mais confiar aos seus concidadãos o poder de se comunicar e decidir no que acreditar por si mesmos.

Eu pessoalmente acredito que isso é mais perigoso para a democracia a longo prazo do que quase qualquer discurso. A democracia depende da ideia de que consideramos o direito uns dos outros de nos expressar e ser ouvidos acima do nosso próprio desejo de sempre obter os resultados que queremos. Você não pode impor tolerância de cima para baixo. Ela tem que vir de pessoas se abrindo, compartilhando experiências e desenvolvendo uma história compartilhada para a sociedade da qual todos nós sentimos que fazemos parte. É assim que progredimos juntos.”

Note que esse discurso ocorreu antes da pandemia e das eleições de 2020, sendo Donald Trump ainda presidente. No entanto, ele aborda questões como “notícias falsas de saúde” e “a influência da Rússia nas eleições de 2016”. Ou seja, apesar de antigo, conceitualmente aborda questões bastante atuais. Não vejo Zuckerberg mudando um vírgula desse discurso cinco anos depois. Não foi à toa a sua menção no início de sua mensagem.

E cabe aqui destacar novamente: esse discurso se deu quando Trump já era presidente há quase 3 anos. Portanto, todo o aparato de segurança montado por Zuckerberg, incluindo fact checkers e IA para detectar conteúdos nocivos estava montado durante o governo Trump. Já daí se vê a incongruência da chamada “dono do Facebook se rende a Trump”, quando teve oportunidade de supostamente fazer isso durante o primeiro mandato e não o fez.

Na verdade, a impressão que temos, e isso fica sugerido no trecho em que Zuckerberg afirma que o atual governo promove a censura, é que o dono do Facebook havia se “rendido” ao governo Biden, e Trump veio para libertá-lo. É isso o que se deduz do discurso de Georgetown. Novamente, a leitura desse discurso é fundamental para entender o contexto da mensagem de ontem. Com uma chave mais cética, poderíamos interpretar essa mensagem como um alívio de Zuckerberg diante dos processos patrocinados pelo governo Biden contra a rede na justiça. Voltaremos a este ponto no final.

Antes de entrarmos nas especificidades das medidas anunciadas por Zuckerberg, vale destacar um último ponto: a forma como o criador do Facebook refere-se à mídia tradicional em sua mensagem. Zuckerberg cita a mídia tradicional em dois pontos: segundo ele a mídia tradicional “defende mais e mais censura” e “Depois que Trump foi eleito pela primeira vez em 2016, escreveu sem parar sobre como a desinformação era uma ameaça à democracia”. Ou seja, ele e as redes sociais estão de um lado e as mídias tradicionais estão do outro na trincheira da livre expressão. É claro que ele acha tratar-se de uma jogada esperta, porque, para Zuckerberg, quanto mais a mídia tradicional estiver na berlinda, mais as pessoas confiarão nas redes. O problema desse raciocínio é que a produção “descentralizada” de notícias, sem a mediação do jornalismo profissional, é uma miragem, não existe. O que existe, sem o jornalismo profissional, são grupos organizados, e nem sempre identificados, procurando emplacar a sua própria narrativa. A respeito dos jornais, ao menos sabemos qual o viés, e há um serviço mínimo de checagem de informações. Ruim com eles, pior sem eles.

Especificamente sobre as medidas tomadas por Zuckerberg, parece-me que o sistema de Notas da Comunidade são melhores do que fact checkers que derrubam conteúdos. A mensagem continua ali, mas os desmentidos da própria comunidade jogam luz sobre o seu conteúdo. Parece-me muito mais eficaz.

Sobre diminuir a potência dos filtros, sempre se pode discutir qual a medida correta aqui. Como diz Zuckerberg, trata-se de um trade off, e na avaliação dele, os filtros foram longe demais, derrubando conteúdos legítimos em quantidade acima do tolerável. Note que ele não vai eliminar os filtros, mas apenas torná-los menos potentes. Zuckerberg afirma várias vezes que há conteúdos nocivos nas redes (ele fala isso também no discurso de Georgetown), e se vê responsável por retirá-los. Mas os assuntos “nocivos” não incluem, por exemplo, questões de imigração e de gênero, e muito menos questões políticas e partidárias. Trata-se, portanto, de reduzir a abrangência do que se considera “nocivo”.

Com relação ao “enforcement”, Zuckerberg afirmou que a rede tomará a iniciativa de derrubar conteúdos em muitos menos casos. Será curioso observar como essa diretiva conversará com a revisão em curso do artigo 19 do marco civil da Internet pelo STF, em que uma notificação extra-judicial será suficiente para que a rede social seja obrigada a derrubar conteúdos.

Por fim, na questão do impulsionamento de conteúdos políticos, Zuckerberg afirma que os usuários agora os estão pedindo, ao contrário do que ocorria alguns anos atrás, quando a Meta decidiu limitar o impulsionamento desse tipo de conteúdo. Trata-se de decisão empresarial legítima, ele decide sobre os algoritmos que maximizam o tráfego em seu site. O curioso é como o gosto do público muda tão rapidamente. Parece até que Zuckerberg cedeu à pressão quando limitou esse tipo de impulsionamento e agora está cedendo à pressão quando decidiu o contrário. Mas pode ser só uma impressão.

Até aqui, a mensagem trata, como diz Zuckerberg, de uma “volta às raizes”, conforme o exposto no discurso de Georgetown. Dois pontos, um pitoresco e outro mais sério, no entanto, parecem expor algo a mais.

O ponto pitoresco é a mudança para o Texas de toda a equipe de segurança e filtragem de conteúdos. Se o problema é o suposto viés dos californianos, a escolha natural seria por um estado pêndulo, como Wisconsin ou Arizona. Escolher o Texas, para esse efeito, não é eliminar o viés, é escolher outro viés, ainda que o Texas seja um pouco menos republicano do que a Califórnia é democrata (Trump ganhou no Texas por 56% a 44%, enquanto Kamala ganhou na California por 58,5% a 38,5%). Aqui, Zuckerberg parece querer mover o pêndulo para o outro lado, ao invés de segurá-lo no centro, escolhendo um Estado-símbolo anti-woke. Descarto aqui a possibilidade de ter escolhido o Texas por questões fiscais ou de facilidade de fazer negócios, pois essa justificativa teria sido levantada pelo próprio Zuckerberg, e não o foi, ele fez questão de citar a questão do “viés”.

Mas o ponto realmente sério está no final da mensagem. Zuckerberg praticamente declara uma espécie de “guerra santa” pela liberdade de expressão no mundo inteiro, empunhando armas ao lado do comandante da Cruzada, Donald Trump. Aqui também há interesse comercial: Zuckerberg vem enfrentando várias ações na justiça americana e ao redor do mundo, e nada melhor do que ter o presidente dos EUA ao seu lado nessas horas. Uma cruzada pela liberdade de expressão vem bem a calhar, no caso.

Ignorando-se essa chave cética e tomando-se ao pé da letra o discurso, a coisa fica ainda pior. Assim como os Estados Unidos fracassaram em toda e qualquer tentativa de patrocinar democracias ao redor do mundo (talvez o Japão pós 2a Guerra seja a única exceção), seria ingênuo achar que o governo americano conseguirá, na base da pressão, impor “liberdade de expressão” ao redor do mundo. Cada povo tem a sua formação e a sua história, e somente os EUA têm founding fathers. Achar que se consegue impor liberdade de expressão de cima para baixo é tão ingênuo quanto achar que se consegue impor tolerância de cima para baixo, como bem notou o mesmo Zuckerberg no discurso de Georgetown. A única coisa que Trump conseguirá se seguir nessa linha é o fechamento ainda maior dos regimes e colecionar acusações de “imperialismo”.

Nós no Brasil precisamos parar de nos iludir de que a sétima cavalaria do Tio Sam vem em socorro da nossa liberdade de expressão. Os brasileiros precisam tomar o seu próprio destino em suas mãos. E se as barreiras institucionais parecem intransponíveis, talvez seja porque seja essa a nossa formação, aquilo que nos faz sermos brasileiros e não americanos. Cada sociedade constrói o seu próprio destino, e uma cruzada americana pela liberdade de expressão não mudará essa realidade.


Mais posts do autor podem ser encontrados em seu substack: https://marceloguterman.substack.com/

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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Um Comentário

  1. Marcelo,

    Mais uma boa reflexão.
    Para começar sou contra a censura e a favor de termos menos Estado e regulação em nossas vidas.
    O tema regular as redes está “quente” no mundo todo e precisa de mais engajamento e discussão da sociedade.
    Lembro que as redes têm grande capacidade de influir nas opiniões das pessoas, cito o exemplo da Eleição Americana de 2018, onde a Cambridge Analytica influiu nos resultados.
    A manchete do Estadão pode ter sido exagerada, mas o próximo presidente americano disse que prenderia o presidente da Meta.
    Terminando, você tem razão: a Meta é uma empresa privada e o dono dela pode interferir e decidir o que quer fazer dela. O desafio é que ela influi na vida de todos , caso não fosse assim, não estaríamos discutindo o tema.
    Obrigado pelo texto.

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