Economia

A natureza dos precatórios e o teto de gastos

Para quem vive com o orçamento apertado, qualquer garoa causa enchente. Esta é a situação do governo, vivendo dentro do espartilho do teto de gastos e precisando pagar todos os desejos da Porta da Esperança.

A última garoa foi a surpresa com a previsão do pagamento de precatórios para 2022, cerca de R$ 30 bilhões adicionais ao que se esperava. O espaço no teto de gastos aberto pela inflação deste ano, que seria usado para anabolizar o Bolsa Família, foi comido por essa surpresa. O que fazer? A criatividade foi chamada em socorro das boas intenções do governo: uma parte dos precatórios será parcelada em 10 suaves prestações e outra parte será paga por fora do teto de gastos, usando os recursos de privatizações e dividendos pagos por estatais.

O que pensar? Vamos por partes.

Houve uma primeira discussão sobre a natureza dos precatórios, fazendo um paralelo com a dívida pública. Como o pagamento da dívida pública está fora do teto de gastos, também os precatórios deveriam estar. Nada mais errado.

Em comum com a dívida pública, os precatórios só têm o nome, dívida. De resto, precatórios têm natureza completamente diversa da dívida mobiliária, aquela que o Tesouro emite para pagar as contas. Enquanto os títulos públicos são comprados voluntariamente pelos credores do Tesouro, os precatórios são instrumentos não voluntários. Os titulares dos precatórios não escolheram investir em precatórios, são apenas as pobres vítimas da falta de pagamento de um direito líquido e certo. Entre esses direitos estão aposentadorias, salários, desapropriações, tributos. A dívida representada pelo precatório, portanto, é tão dívida quanto a sua origem: não pagar aposentadorias ou salários de funcionários públicos é tão grave quanto não pagar precatórios. É a mesma coisa.

Sendo a mesma coisa, não há justificativa para tirar o pagamento de precatórios do teto de gastos. Seria o mesmo que tirar aposentadorias e salários. O precatório é apenas o reconhecimento, pela justiça, de que se deve pagar essas coisas. Não sendo nada mais do que isso, não se justifica a sua excepcionalidade. No limite, tudo é dívida do governo. Inclusive, os críticos do teto de gastos dizem que o governo tirou os gastos com a dívida pública do teto, mas mantém o espartilho na chamada “dívida social”, que é muito mais grave.

Outra é a natureza da dívida mobiliária. Como dissemos acima, os detentores dessa dívida concordaram livremente em emprestar dinheiro para o governo. Não pagar os juros ou o principal dessa dívida configura calote. Enquanto podemos dizer que o não pagamento de precatórios ou de aposentadorias ou de salários também se configura em calote, dado que há um contrato perfeito entre as partes, as consequências do não pagamento de um e outro são completamente diferentes.

Se o governo não paga precatórios, aposentadorias ou salários (como tem acontecido com frequência pelo Brasil afora), o máximo que pode enfrentar são protestos ou greves. De modo geral, os instrumentos de pressão sobre o governo são fracos. Já com a dívida mobiliária é diferente: um leve movimento de sobrancelha sugerindo que o governo está pensando em não pagar juros ou o principal de sua dívida já é o suficiente para os credores exigirem taxas de juros mais altas. No limite, esses credores, pelo fato de serem voluntários, podem simplesmente se recusar a continuar financiando o governo. E é aí que está a grande diferença em relação aos precatórios.

Imaginemos, por um momento, que o governo desse calote em toda a dívida pública. O que aconteceria? Não haveria mais a quem recorrer para tapar o buraco do orçamento. O governo precisaria fazer superávit primário se quisesse continuar pagando os seus compromissos. Só para lembrar, o governo não faz superávit primário desde 2014, e não há previsão de voltarmos a fazer superávit primário até pelo menos 2024. Auxílio emergencial na pandemia? Esquece, não teria como, a não ser cortando outros gastos. Claro, no limite, o governo pode lançar mão daquela maquininha mágica de imprimir papel colorido, mas isso daria um alívio apenas de curto prazo, como vem nos ensinando Venezuela e Argentina.

Portanto, o governo não tem alternativa a não ser pagar a dívida mobiliária. Por isso, esse pagamento não pode estar dentro do teto de gastos. A natureza da dívida mobiliária é diferente da de todas as outras dívidas. A dívida mobiliária nasce da necessidade de o governo antecipar e expandir os seus gastos além daquilo que arrecada. Se o governo vivesse sempre dentro de suas posses, não existiria dívida pública. Ora, o pagamento da dívida pública dentro do teto limitaria a própria capacidade do governo de se endividar e pagar todas as suas outras “dívidas”, incluindo as sociais. Talvez não fosse má ideia, ainda que inexequível.

Este raciocínio é válido mesmo para o caso de pagamento dos precatórios com dinheiro de privatizações e dividendos de estatais. No final do dia, estamos carimbando um dinheiro que, de outra maneira, serviria para abater dívida ou pagar outras despesas por dentro do teto de gastos. Tirar despesas do teto, mesmo que tenha fonte carimbada, tem como consequência o aumento da dívida pública além daquilo previsto pelo teto de gastos. O teto existe justamente para controlar o aumento da dívida. Se começarmos a tirar despesas do teto, mesmo carimbando receitas para pagá-las, o resultado será o aumento do descontrole da dívida pública. A não ser que a receita somente existisse para pagar aquela despesa, e não existisse se a despesa também não existisse. Mas não é o caso aqui: continuaremos fazendo privatizações e as estatais continuarão a pagar dividendos, independentemente se os precatórios estão dentro ou fora do teto. O gasto que saiu do teto dará espaço para outros gastos por dentro do teto (alô Bolsa Família anabolizada!), aumentando a dívida.

Em resumo: a classe política brasileira tem uma imensa, gigantesca dificuldade em conviver com limites de orçamento. Estão sempre pensando em fórmulas para driblar estes limites. Temos um histórico ruim como devedores e, por isso, qualquer movimento no sentido de ludibriar os credores é visto com desconfiança. Pagamos o preço por não sermos um país sério no trato da coisa pública. E movimentos como esse dos precatórios só fazem piorar a situação.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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