Brasil

A lombada nossa de cada dia (ou; a triste história de um país que se recusa a melhorar)

“O subdesenvolvimento não se constrói da noite para o dia. É obra de séculos” (Nélson Rodrigues).

O incrível causo do japonês e a lombada

Uma das melhores histórias que ouvi em resenha de final de pelada foi contada por um colega de bola e de copo, que, na época, era o diretor técnico da filial Rio de Janeiro de uma multinacional com sede no Japão. Isto foi lá pelo início dos anos 2000. Já usei o exemplo em aulas e palestras, porque é bem interessante e ajuda a entender muita coisa.

Um dia o presidente da empresa resolveu visitar a fábrica do Rio. E coube ao meu amigo o papel de cicerone do japa ilustre. Ele pegou o Big Boss no então Hotel Meridién e foram para Jacarepaguá, onde ficava a fábrica. O cara estava empolgadíssimo, como todo mundo que chega ao Rio de Janeiro pela primeira vez. E a conversa seguia bem até que, em uma rua do subúrbio, o carro passou por uma lombada (conhecida no Rio como quebra-molas). E depois por outra, e mais outra… Até que o japonês não aguentou e perguntou que diabo era aquilo. Meu amigo respondeu que era usado para obrigar os carros a diminuir a velocidade. Incrédulo, o poderoso CEO respondeu o óbvio; mas pra que isto? Por que não colocam apenas uma placa?

“Nunca me senti tão ridículo. Imagina explicar em inglês, pra um japonês, que o motorista brasileiro, especialmente o carioca, não gosta de obedecer placas de trânsito? Tive que dar um jeito de mudar de assunto…”, concluiu meu amigo, envergonhado.

O custo pesado das lombadas

Esta história nunca saiu da minha cabeça. Quando fiz meu mestrado em gestão ambiental, entre 2017 e 2020, cheguei a pensar em escrever um artigo sobre este assunto; quanto representam as lombadas para a economia nacional?

Só para dar um exemplo, a rua onde moro há mais de vinte anos, a Prefeito Dulcídio Cardoso, na Barra da Tijuca, tem dezessete lombadas ao longo de seus quase quatro quilômetros (eu mesmo contei). Somando com as três que tenho que enfrentar na garagem do meu prédio, são vinte por saída com o carro. E a cada uma delas, o ritual de frear, levar o tranco e reacelerar (e, para quem ainda não tem carro com câmbio automático, acrescente-se ao calvário a pisada na embreagem e a mudança de marcha).

Não precisa ser um gênio para entender o quanto isto significa em termos de desgaste para o veículo (pneus, suspensão, molas), para o motorista (força o pé, a perna, a coluna, aumenta a irritação) e para o meio ambiente (aumento do consumo de combustível e da emissão de poluentes). Isto sem falar em acidentes (quanta gente já se arrebentou porque não viu a lombada?). Ela também atrasa ambulâncias, polícia e veículos de socorro, além de engarrafar o trânsito. Enfim, se colocar tudo na ponta do lápis, acho que não é nenhuma heresia afirmar que a parcela do PIB brasileiro jogada fora nas milhares de lombadas espalhadas por este país continental não é desprezível.

Desisti do artigo acadêmico porque não consegui achar referências concretas em termos de números sobre o tema, mas é interessante notar que já havia regulamentações sobre o assunto desde a década de 1970. E que as lombadas são proibidas pelo artigo 94 do Código de Trânsito Brasileiro, em vigor desde 1998. O problema é que a lei aceita “exceções”, que deveriam ser objeto de estudos de engenharia (tenho certeza que, como ocorre com muitas leis brasileiras, esta “não pegou”). Enfim, a lombada é mais um dos pesadelos que o motorista brasileiro é obrigado a enfrentar diariamente.

E precisa disto?

A pergunta que não quer calar é; porque precisamos de lombadas, se os japoneses não precisam? Será que somos, efetivamente, um povo não civilizado, ainda preso ao Neandertal ou algo parecido? Infelizmente parece que a resposta é sim.

Sem tentar propor um tratado sobre psicologia comportamental (sou um mero engenheiro, não tenho condições pra isto), o fato é que a indisciplina parece ser uma característica fortemente enraizada no comportamento do povo brasileiro, e se eleva a uma potência muito grande quando estamos ao volante de um veículo. Posso testemunhar que, mesmo com todas as suas dezessete lombadas, já vi muitas vezes gente passando em alta velocidade pela minha rua. Quebrar regras não é apenas um comportamento tolerado no Brasil; é, muitas vezes, motivo de orgulho, sabe-se lá por quê.

Indo um pouco adiante no raciocínio, a impressão que tenho é que o brasileiro é o único povo do mundo que tem raiva de si próprio. Já levantei esta teoria em vários papos de boteco e tenho o respaldo de Nelson Rodrigues (sempre ele!), que dizia que o “o brasileiro é o Narciso às avessas; se puder, ele cospe na própria imagem”. A lombada é uma boa demonstração deste meu teorema; enquanto o japonês se vê como parte de um todo e, por respeitar os seus semelhantes, obedece às leis do trânsito, o brasileiro tem que ser detido por um obstáculo físico, senão vai realizar sua missão eugenista e eliminar o máximo de brasileiros que puder. Em outras palavras, se não tiver lombada ele sai atropelando todos os que ousarem cruzar o seu caminho. Não vou perder tempo tentando explicar o inexplicável; sou apenas um observador da realidade.

Antes que alguém tente politizar minha teoria, aviso que este comportamento é muito anterior à disputa ridícula entre os irmãos siameses Lula e Bolsonaro, portanto não adianta jogar a culpa em um ou no outro. Parafraseando uma metáfora muito popular, eu diria que o buraco é bem mais profundo que isto. De qualquer forma, prá não perder a viagem, entendo que nossa eterna opção por políticos “justiceiros”, que pregam a desunião e “aniquilar os inimigos” tem a ver com a teoria do brasileiro que se odeia. Tudo bem, esta fica pro próximo chope.

Resumindo, nosso comportamento troglodita obriga a sociedade a adotar uma medida que tem reflexos negativos na saúde, economia e meio ambiente. Mas não conseguimos mudar. Citando Cazuza, por que a gente é assim?

Só nos resta dar as mãos e cantar, ao estilo mal-educado das torcidas de futebol; “Puta que pariu! A lombada é a cara do Brasil!”.

Triste verdade.

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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2 Comentários

  1. O cara é engenheiro ( eles erram em 99% do que fazem, sobretudo obras públicas), pior ainda é do RJ ( o que já marca a origem desastrosa ) e coroa a quase ”análise socióloga” com duas pérolas batidas: a dos siameses e citar um lixo como Cazuza. Só do RJ, berço de tudo que não presta culturalmente e imposto ao Brasil todo pelas suas ”televisões”, mesmo para citar um drogado que não suportava regras e leis, né não? Tente terapia, coerência e lógica não são seu forte.:))

  2. Pois é Márcio, não somente a lombada éa cara do Brasil, como você comentou até algumas leis são feitas para ser descumpridas. Ótimo artigo.

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