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Resenha: O ponto de virada – a guerra do Vietnã

Um aperitivo sobre uma série excelente

A coletânea “Ponto de Virada” já havia nos brindado com dois excelentes documentários – um sobre a Guerra ao Terror, outro sobre a bomba atômica e a Guerra Fria – ambos disponíveis na Netflix. O mais recente lançamento, dedicado à Guerra do Vietnã, mantém o alto nível de qualidade. São cinco episódios longos, com mais de uma hora de duração cada, que mesclam depoimentos de protagonistas do conflito – americanos e vietnamitas do Norte e do Sul – além de historiadores, jornalistas e analistas políticos. A narrativa se desenrola com farta documentação visual, incluindo imagens da guerra, áudios de diálogos captados na Casa Branca e cenas dos bastidores políticos nos EUA, cobrindo desde o início da década de 1960 até a queda de Saigon, em 1975.

Confesso que conhecia pouco sobre esse conflito, e a série cumpriu um papel educativo sem igual, expondo com crueza as conexões entre a guerra e a política interna americana. Segundo os analistas, esse foi o momento em que os cidadãos dos EUA perderam sua inocência e deixaram de confiar cegamente em seus líderes. A mentira – ou, na melhor das hipóteses, a omissão de informações – foi uma constante atravessando todas as gestões envolvidas: JFK, Lyndon Johnson e Richard Nixon. Não cito Gerald Ford, pois quando assumiu a presidência, o conflito já se arrastava em seu epílogo, com todas as feridas expostas.

A gênese do conflito está ligada ao colapso do colonialismo europeu na Ásia, cujo legado extrativista deu origem à ascensão de movimentos comunistas que prometiam uma alternativa aos povos explorados. No Vietnã, após a expulsão dos franceses, Ho Chi Minh, à frente do Vietnã do Norte, buscava unificar o país sob uma bandeira socialista, enfrentando o Vietnã do Sul, então governado por Ngo Dinh Diem – um déspota pertencente à minoria católica, assassinado em 1963 após um golpe de Estado, com o aval silencioso dos EUA.

A série sugere que, à época da luta anticolonial, Ho Chi Minh esperava obter apoio dos EUA, por também terem surgido como nação independente após uma guerra contra uma potência colonial. Mas o contexto da Guerra Fria capturou o destino do Vietnã: tratava-se agora de conter o comunismo a qualquer custo, ainda que os meios fossem questionáveis. Um relatório interno da CIA, posteriormente vazado, já alertava que a guerra seria impossível de vencer – um diagnóstico conhecido por todos os presidentes que a conduziram.

A guerra do Vietnã foi a primeira a ser transmitida pela televisão com imagens diárias do front, e isso teve impacto direto na opinião pública. A imprensa – notadamente a CBS – desmontou versões oficiais com imagens e relatos desconcertantes. O prestígio da Casa Branca desmoronava a cada semana, enquanto a indignação crescia nas ruas.

Internamente, Lyndon Johnson avançava de forma admirável com a agenda dos direitos civis, mas era tragado pelo fiasco no Sudeste Asiático. A guerra inviabilizou sua candidatura à reeleição. Pouco depois, Martin Luther King Jr. e Robert Kennedy – então provável candidato democrata – foram assassinados, abrindo caminho para a eleição de Nixon, que prometia paz, mas intensificou o conflito e adiou seu fim por razões eleitorais. Renunciou em 1973, sob a sombra do escândalo Watergate.

A desigualdade racial estava presente também no recrutamento: os negros, que eram 11% da população, representavam 25% das tropas em combate. Outra face obscura do conflito foi o chamado fragging – atentados deliberados de soldados contra seus próprios comandantes, com o uso de granadas. Foram quase mil casos. Ao final da guerra, os recrutas não queriam estar lá. Estima-se que 25% das tropas eram dependentes de heroína e 50% faziam uso regular de maconha. O retorno dos veteranos foi marcado pelo abandono e pelo desprezo social.

A série não poupa nenhum dos lados ao mostrar os crimes de guerra cometidos. Imagens e relatos chocantes revelam como, após a verdade, a segunda vítima de qualquer conflito armado é o senso de humanidade.

Com o avanço do Vietnã do Norte e a recusa do Congresso americano em aprovar um novo pacote de ajuda, o presidente Gerald Ford assistiu à inevitável queda de Saigon e à debandada dos últimos americanos e aliados vietnamitas. Estima-se que dois milhões de civis morreram, além de 1,1 milhão de combatentes vietnamitas e 60 mil soldados americanos.

Apesar de números menores do que os da Segunda Guerra, o impacto moral e simbólico da derrota foi avassalador. Conflitos posteriores, como as intervenções no Iraque e no Afeganistão, tiveram elementos em comum: justificativas frágeis, desfechos trágicos, e heranças pesadas. Talvez por isso, hoje, os EUA adotem uma postura mais cautelosa e isolacionista em relação a intervenções militares.

Essa breve resenha é apenas uma introdução ao conteúdo denso da série. Para quem se interessa por geopolítica, história militar ou política externa americana, é uma obra essencial.

Disponível na Netflix. No IMDb, a série registra nota 8.2. A minha: sólido 8.

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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