Política

Israel e a ONU – Cap. 8: A OLP e o Estado palestino

O que é um Estado? Segundo o filósofo alemão Max Weber, “O Estado é aquela comunidade humana que, dentro de determinado território, reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física legítima”.

Para que essa coação seja operacional, é necessário o estabelecimento de alguma forma de governo consensual naquela comunidade humana (quem legitimamente manda). E, uma vez definidas essas bases, é preciso que aquele Estado seja reconhecido pela comunidade dos Estados, ou seja, que tenha legitimidade externa. Note a ordem: primeiro, a legitimidade interna, um consenso sobre o regime de governo. Depois, a legitimidade externa.

Os Estados modernos nasceram, ou como resultado de lutas internas, em que grupos disputam a hegemonia política em um determinado território, ou como resultado de lutas externas, em que uma determinada comunidade humana se livra do jugo de um colonizador externo. Para que haja esta libertação, é imprescindível que haja um mínimo de consenso sobre a forma de governo que operacionalizará o novo Estado após a libertação. Como diz a Bíblia, um reino dividido não subsiste.

Este pequeno preâmbulo serve para estabelecer as bases da discussão sobre o Estado palestino. Antes da resolução 181, de 29/11/1947, havia, no território da Palestina, um Mandato Britânico, que vinha desde o fim da 1ª Guerra Mundial, no lugar que antes era parte do Império Otomano. Aquele não era um território inglês, mas apenas uma espécie de colônia. A resolução 181 propôs uma divisão daquele território entre árabes e judeus.

E aqui, paramos para entender um ponto fundamental dessa questão. A resolução 181 não criou o Estado de Israel, como comumente se entende. A resolução 181 apenas estabeleceu as fronteiras do que seriam os futuros estados árabe e judeu no antigo Mandato Britânico. Pode-se discutir se as fronteiras desenhadas foram as mais justas possíveis com ambos os povos, ou se não teria sido melhor ter os dois povos convivendo em um único país. Mas o fato é que esta resolução foi aprovada por aqueles que “mandavam” no mundo pós segunda guerra, Estados Unidos e União Soviética. Neste caso muito particular, a legitimidade externa antecedeu a legitimidade interna, invertendo a ordem natural do processo histórico, e causando a sensação de algo artificial.

O povo judeu logo organizou-se em torno de um governo consensual, fator fundamental para o estabelecimento de um Estado, e conseguiu fundar o Estado de Israel cerca de 6 meses após a resolução 181. Já o povo árabe daquela região não se mexeu. E não se mexeu, suponho, porque não havia, de fato, um povo organizado em torno de uma liderança. No caso dos judeus, os organizadores do sionismo internacional foram, desde sempre, considerados como os líderes naturais de um futuro Estado judeu. Apesar das disputas internas entre moderados e radicais (sempre há!), os judeus conseguiram chegar a um mínimo denominador comum institucional, o que lhes permitiu fundar um Estado. Já os árabes da região preferiram acreditar nas promessas de seus irmãos do Egito, da Síria, do Líbano e da Jordânia, de que teriam aquela terra só para eles.

De fato, no dia seguinte à fundação do Estado de Israel, os países árabes declararam guerra, imaginando que poderiam facilmente retomar aquele território. Fico cá imaginando o que teria acontecido se tivessem tido sucesso naquela empreitada de 1948. Será que haveria um Estado palestino, ou antes, uma repartição daquela terra entre os países árabes existentes?

A história não tem “se”, então tudo o que podemos é imaginar o cenário. Tendo a acreditar que dificilmente haveria hoje um Estado palestino independente naquele território, pelo mesmo motivo que não há hoje: não havia uma liderança que organizasse o governo dos árabes que viviam no território. Lembremos que Gaza e Cisjordânia permaneceram uma espécie de “terra de ninguém” sob a tutela de Egito e Jordânia, respectivamente, durante 19 anos, até a Guerra dos Seis Dias. O que impediu, nesse meio tempo, a constituição de um Estado palestino nesses territórios? A OLP, inclusive, em sua carta fundacional de 1964, é explícita com relação a este ponto em seu parágrafo 24: “Esta Organização não exerce qualquer soberania territorial sobre a Cisjordânia, no Reino Hachemita da Jordânia, na Faixa de Gaza ou na área de Himmah[1]. As suas atividades serão a nível popular nacional nos campos libertador, organizacional, político e financeiro”.

Mas voltemos à questão da organização política dos árabes da Palestina. Foi somente em 1964 que, durante a primeira Conferência da Liga Árabe, tomou-se a decisão de juntar todos os grupos de resistência dos árabes palestinos em um único corpo, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). De modo geral, esta é a estrutura governamental que deveria liderar um futuro Estado palestino. Mas a OLP nasce com um vício de origem: seu propósito é acabar com o Estado de Israel e passar a comandar politicamente todo o território do antigo Mandato Britânico na Palestina. Talvez por isso tenham ignorado por muito tempo, até os acordos de Oslo (1993), a possibilidade de estabelecerem um Estado em Gaza e na Cisjordânia.

Temos aqui, portanto, a contradição insanável da ONU: o reconhecimento da OLP como liderança dos palestinos em 1974 e, ao mesmo tempo, a defesa de uma solução de dois Estados, algo que estava fora dos planos da OLP até 1993. Voltaremos a este ponto mais à frente.

primeira carta da OLP, de 1964, não deixa margem a dúvidas sobre o seu objetivo. Em seu artigo 2º, diz textualmente:

A Palestina, com suas fronteiras ao tempo do Mandato Britânico, é uma unidade territorial indivisível”.

Mas concedem, no artigo 6º, que

os judeus de origem palestina são considerados palestinos se eles desejarem viver pacífica e lealmente na Palestina”.

Ou seja, judeus de origem europeia teriam que deixar a terra. Os artigos 17 e 18 da carta de fundação da OLP denunciam a declaração Balfour de 1917 e a consequente partilha feita pela ONU em 1947. Para eles, estas decisões não estavam de acordo com o desejo dos habitantes árabes da Palestina na época.

Mas o mais impressionante, na minha opinião, é o artigo 13, que diz o seguinte:

O destino da Nação Árabe e até a essência da existência Árabe estão firmemente ligadas ao destino da questão Palestina. Desta ligação firme deriva o esforço e a luta da Nação Árabe para libertar a Palestina. O povo da Palestina assume o papel de vanguarda na consecução deste sagrado objetivo nacional.”

É sem dúvida bastante forte ligar a “essência da Nação Árabe” à libertação da Palestina, sendo esta libertação um “objetivo sagrado” de toda a Nação Árabe. Como se a Palestina e todos os países árabes formassem uma só nação, com um só objetivo: expulsar os judeus da Palestina e varrer o Estado de Israel do mapa.

Esta carta foi atualizada em 1968, depois da Guerra dos Seis Dias. Como se possível fosse, a carta se torna ainda mais radical, com uma chamada explícita à luta armada, como fica claro no novo artigo 9º, inexistente na carta anterior:

A luta armada é o único caminho para libertar a Palestina. Esta é a estratégia geral, não meramente uma fase tática”.

De qualquer forma, o ponto aqui parece bastante claro: não existiu um Estado palestino ao lado do Estado de Israel porque 1) os palestinos não contavam com lideranças capazes de unificar os habitantes do território em torno de um governo de consenso e, principalmente, 2) os árabes queriam a terra toda e não somente a parte que lhes cabia na partilha estabelecida pela ONU, que sempre foi denunciada pelo mundo árabe como “injusta”. Ou seja, os árabes venderam aos seus irmãos da Palestina a ilusão de que teriam aquela terra “de volta”, o que impediu que se caminhasse em direção a uma solução de dois Estados a partir de 1948.

As resoluções da ONU insistem no ponto de que a questão da autodeterminação dos palestinos é o centro do problema do Oriente Médio. Na verdade, o centro do problema do Oriente Médio é o não reconhecimento de Israel por parte do Mundo Árabe. No dia em que o Mundo Árabe reconhecer o direito de Israel existir exatamente onde está, e for responsabilizado pelos ataques de radicais contra judeus no mundo inteiro, então, talvez, possamos caminhar seriamente para uma solução de dois Estados.

A OLP na ONU

A ONU convidou a OLP, reconhecido como representante do povo palestino, a participar das deliberações da Assembleia Geral sobre a questão palestina através da resolução 3210, de 14/10/1974. Esta resolução foi aprovada com 76% dos votos, uma aprovação média. O Brasil votou a favor. Os votos “não” foram apenas 4 (Israel, EUA, Bolívia e República Dominicana), mas Alemanha Ocidental, Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Islândia, Luxemburgo, Holanda, Reino Unido, entro outros, se abstiveram.

Em seguida, a resolução 3237, de 22/11/1974, convidou a OLP a participar nas sessões e nos trabalhos da Assembleia na qualidade de observador. Não entendo muito de ONU, mas parece que esse “upgrade” da OLP agradou menos ainda: aqui, tivemos uma aprovação com 69% dos votos, e 17 votos contrários: Alemanha Ocidental, Bélgica, Bolívia, Canadá, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Estados Unidos, Holanda, Islândia, Irlanda, Israel, Itália, Luxemburgo, Nicarágua, Noruega e Reino Unido. O Brasil, novamente, votou favoravelmente.

Nos anais das discussões em torno desta resolução, Israel, obviamente, descascou o verbo contra a admissão à ONU, ainda que com o status de “observador”, de uma organização terrorista que, em sua carta fundacional, deixa claro o objetivo de eliminar um Estado-membro da ONU. Mas o esclarecimento mais interessante veio do representante da Alemanha Ocidental, não coincidentemente, a terra natal de Max Weber. O embaixador alemão justifica o seu voto contrário com base em conceitos filosóficos bastante bem definidos:

Esta resolução […] tem como objetivo trazer para um relacionamento mais próximo com as Nações Unidas uma organização que não é um Estado e que não pode ser comparado a um Estado. A resolução também pretende estabelecer este relacionamento em bases permanentes. Nesse contexto, é necessário relembrar o fato de que a nossa Organização é, estruturalmente, uma organização de Estados; seus membros são Estados e deveria, em princípio, lidar com Estados ou organizações e associações de Estados, ou seja, com organizações intergovernamentais.

Ou seja, a Alemanha entende que a OLP não representa um Estado e, portanto, não poderia participar das deliberações da Assembleia, mesmo que sem voto, apenas como observadora. Só poderia partir do representante alemão um tratado conceitual do que é a Assembleia das Nações Unidas e porque a OLP não preenche os requisitos básicos para dela fazer parte, nem com o status de “observador”. E isto nos dá a deixa para justamente entrarmos na questão do Estado palestino e o papel da ONU nesse contexto.

A ONU e o Estado palestino

Como já vimos no início deste artigo, a resolução 181 da ONU dividiu o antigo Mandato Britânico da Palestina entre judeus e árabes. Os judeus formaram um Estado no ano seguinte, em 14/05/1948. A partir daí, vários países reconheceram o Estado de Israel, conforme a tabela (não exaustiva) a seguir[2]:

* Países que posteriormente cortaram relações com Israel

** As primeiras eleições de Israel ocorreram em janeiro de 1949, razão pela qual vários países decidiram reconhecer o novo Estado a partir desta data.

Os países que ainda hoje não reconhecem Israel são os seguintes: Afeganistão, Arábia Saudita, Argélia, Bangladesh, Brunei, Comoros, Cuba, Djibouti, Guiné, Indonésia, Irã, Iraque, Kuwait, Líbano, Líbia, Malásia, Maldivas, Mali, Níger, Coreia do Norte, Omã, Paquistão, Qatar, Somália, Síria, Tunísia, Venezuela e Yemen.

Os árabes da Palestina, por sua vez, não constituíram um Estado árabe no território, e este assunto ficou dormente na ONU até a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Até esta data, a preocupação era somente com o “direito de regresso” dos palestinos às suas propriedades em Israel.

A partir de 1967, quando Israel ocupa Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental, os únicos territórios ainda ocupados pelos árabes na Palestina após a guerra de 1948, as resoluções da ONU irão focar na desocupação desses territórios e na “autodeterminação do povo palestino”. Esta palavra, “autodeterminação”, irá aparecer pela primeira vez, em referência aos árabes da Palestina, na resolução 2672, de 8/12/1970. “Autodeterminação” é uma palavra que designa justamente o direito de se organizar de maneira independente e não subordinada a qualquer governo externo. Tem o mesmo significado que a palavra “soberania”, e é o embrião da ideia de um Estado palestino independente.

Não deixa de ser curioso que, 23 anos após a partilha definida pela resolução 181, a ONU tenha que reafirmar algo que já estava implícito naquela resolução. Ao dividir a Palestina entre árabes e judeus, esperava-se que uns e outros se organizassem. Somente os judeus o fizeram e, agora, a ONU precisa aprovar resoluções para afirmar uma realidade que era óbvia desde o princípio, e contra a qual Israel não se opôs, pelo menos até 1967.

A partir de 1967, quando fica claro que não havia solução de compromisso com os árabes, e que a OLP se tornaria uma força terrorista ameaçando a integridade física dos israelenses, Israel toma as providências para se proteger, o que inclui a ocupação de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental, além das colinas de Golã. Quando, em 2005, Israel desocupa a Faixa de Gaza, recebe como recompensa a eleição do Hamas em 2006, o sucedâneo da OLP pré-acordos de Oslo, em uma demonstração de que a ocupação tinha a sua razão de ser.

Mas voltemos às resoluções da ONU. Em 15/12/1988, a resolução 43/177, em seu parágrafo 1º,

Reconhece a proclamação do Estado da Palestina pelo Conselho Nacional da Palestina em 15/11/1988

e, no parágrafo 3º,

Decide que, a partir de 15/12/1988, a designação “Palestina” deve ser usada no lugar da designação “OLP” no sistema das Nações Unidas”.

O território do novo Estado é definido no parágrafo 2º da mesma resolução:

Afirma a necessidade de permitir ao povo palestino exercer a sua soberania sobre o território ocupado desde 1967.

Vamos destacar a seguir alguns trechos dessa declaração da independência da Palestina.

“Apesar da injustiça histórica infligida ao povo árabe palestino, resultando na sua dispersão e privando-o do seu direito à autodeterminação, na sequência da Resolução 181 (1947) da Assembleia Geral da ONU, que dividiu a Palestina em dois estados, um árabe, um judeu, mas é esta resolução que ainda proporciona as condições de legitimidade internacional que garantem o direito do povo árabe palestino à soberania.” (grifo meu).

Meu comentário: ao mesmo tempo que chama a resolução 181 de “injustiça histórica”, a OLP reconhece que esta resolução é a base para a legitimidade internacional do Estado palestino. Este posicionamento algo esquizofrênico talvez tenha algo a ver com a situação atual dos palestinos.

“A massiva revolta nacional, a intifada, intensificando-se agora em escopo e força nos territórios palestinos ocupados, bem como a resistência inabalável dos campos de refugiados fora da pátria, elevaram a consciência da verdade e do direito palestinos a níveis ainda mais elevados de compreensão e realidade. Agora, finalmente, a cortina caiu em relação a toda uma época de prevaricação e negação. A intifada sitiou a mente de Israel, que durante demasiado tempo se baseou exclusivamente no mito e no terror para negar completamente a existência palestina. Devido à intifada e ao seu impulso revolucionário irreversível, a história da Palestina chegou, portanto, a uma conjuntura decisiva.” (grifo meu).

Meu comentário: a intifada é alçada a catalisador do estabelecimento do Estado palestino, na medida em que demonstra à potência ocupante, Israel, o desejo de autodeterminação dos palestinos. No entanto, fica sempre a questão: o que aconteceu entre 1948 e 1967, quando não havia a ocupação? Por que o povo palestino não se organizou nesse período para estabelecerem um Estado?

“O Conselho Nacional da Palestina, em nome de Deus e em nome do povo árabe palestino, proclama por este meio o estabelecimento do Estado da Palestina no nosso território palestino com a sua capital Jerusalém (Al-Quds Ash-Sharif).”

Meu comentário: o interessante é que não se define qual é esse “território palestino”, e a capital é Jerusalém, coisa que a Israel não é permitido definir.

“O Estado da Palestina é o estado dos palestinos onde quer que estejam. Cabe aos palestinos desfrutarem nele a sua identidade nacional e cultural coletiva, cabendo a eles perseguir nele uma completa igualdade de direitos. Nele serão salvaguardadas as suas convicções políticas e religiosas e a sua dignidade humana através de um sistema democrático parlamentar de governança, ele próprio baseado na liberdade de expressão e na liberdade de formar partidos. […] A governança basear-se-á em princípios de justiça social, igualdade e não discriminação nos direitos públicos de homens ou mulheres, com base na raça, religião, cor ou sexo, e na égide de uma constituição que garanta o Estado de direito e um poder judicial independente. Assim, estes princípios não permitirão qualquer afastamento da antiga herança espiritual e civilizacional da Palestina, de tolerância e coexistência religiosa.” (grifos meus).

Meu comentário: quem lê tem a impressão de que está se estabelecendo um estado democrático nos moldes ocidentais. O curioso é que em 60 anos (desde 1964, quando a OLP foi fundada), o Estado palestino teve apenas dois dirigentes, Yasser Arafat e Mahmoud Abbas, com um breve intervalo entre 2006 e 2007, quando o Hamas venceu as eleições, para logo em seguida ser rejeitado por Abbas.

“O Estado da Palestina é um Estado árabe, uma parte integrante e indivisível da nação árabe, unido a essa nação em termos de herança e civilização, e também com ela na sua aspiração à libertação, ao progresso, à democracia e à unidade.” (grifo meu).

Meu comentário: cite um estado árabe que seja democrático, no sentido ocidental do termo.

Israel é citado quatro vezes na declaração de independência da Palestina, três das quais se referem à “ocupação de territórios palestinos”. Não fica claro, no entanto, quais seriam esses territórios, se todo o antigo Mandato Britânico, ou se os territórios ocupados em 1967. Por outro lado, como há a menção à resolução 181 como base para a legitimidade internacional do novo Estado, é de se supor que estejam se referindo à segunda hipótese. De qualquer modo, trata-se de algo ambíguo, e não deixa de ser significativo que essa suposta “identidade palestina” desperte somente 40 anos após a resolução 181. Novamente, passaram-se 19 anos entre 1948 e 1967 sem ocupação israelense alguma, quando os palestinos poderiam ter estabelecido o seu Estado sem problemas. Por que não o fizeram?

É inescapável contrastar esta declaração palestina com a declaração de independência de Israel. Destaco dois trechos a seguir:

APELAMOS – no meio do ataque lançado contra nós há meses – aos habitantes árabes do Estado de Israel para que preservem a paz e participem na construção do Estado com base na cidadania plena e igual e na devida representação em todas suas instituições provisórias e permanentes.

ESTENDEMOS a nossa mão a todos os estados vizinhos e aos seus povos numa oferta de paz e boa vizinhança, e apelamos-lhes para que estabeleçam laços de cooperação e ajuda mútua com o povo judeu soberano estabelecido na sua própria terra. O Estado de Israel está preparado para fazer a sua parte num esforço comum para o avanço de todo o Médio Oriente.

A declaração de Israel, como podemos observar, apela para a paz com os seus vizinhos, que, como sabemos, se recusaram a aceitar o novo Estado. 40 anos depois, após inúmeros conflitos que poderiam ter sido evitados, os árabes da Palestina decidem finalmente fundar o seu Estado e, implicitamente, aceitar a existência de Israel, o que seria explicitado 5 anos depois, nos acordos de Oslo.

Mas, como sabemos, uma parte relevante dos árabes da Palestina, assim como seus apoiadores no Ocidente, ainda não aceitam a existência de Israel, razão pela qual o Hamas ascendeu ao poder em 2006. Israel, como não poderia deixar de ser, defende a sua existência por todos os meios disponíveis, ainda que se possa criticar a sua política de assentamentos na Cisjordânia.

Um último pequeno detalhe antes de continuarmos. A declaração de independência da Palestina começa e termina com a frase: “Em nome de Deus, o Compassivo, o Misericordioso.” Já a declaração de independência de Israel começa com a história do povo de Israel e termina com a frase “Colocando nossa confiança na força de Israel”. O interessante é como o tradutor explica essa frase originalmente em hebraico: “A Força de Israel (em hebraico: צור ישראל tzur yisra’el, literalmente “A Rocha de Israel” ou “A Fortaleza de Israel”) – é também um dos títulos de Deus. A ambiguidade na seleção deste termo foi intencional. De acordo com Tom Segev em Os Primeiros Israelenses, o termo foi escolhido para satisfazer a exigência do representante do partido religioso Moshe Shapira, de que “o Senhor de Israel” deveria ser mencionado na declaração, ao mesmo tempo que satisfazia a objeção do partido esquerdista MAPAM, de que “o Senhor de Israel” não deveria ser mencionado na declaração. Ben Gurion disse que poderia concordar com essa formulação, desde que a declaração fosse aprovada antes do sábado e antes de os britânicos deixarem o país.”

Meu comentário: a diferença entre uma sociedade democrática contemporânea e uma teocracia absolutista está clara até na escolha dos termos da declaração de independência.

Continuemos com as resoluções da ONU.

Os Acordos de Oslo, o mais próximo que Israel e os árabes chegaram a um acordo de paz, foram pela primeira vez citados por uma resolução da ONU em 10/12/1993. A resolução 48/40(A) “acolhe com satisfação a assinatura pelo Governo do Estado de Israel e pela OLP da Declaração de Princípios sobre Acordos Provisórios de Autogoverno, […], em Washington, D.C., em 13/9/1993”. Portanto, temos aqui a primeira iniciativa concreta para a organização de um Estado palestino.

Como vimos no início deste artigo, um Estado, para existir, necessita de um governo organizado. No caso da Palestina, este governo se concretizou na Autoridade Palestina, com os antigos dirigentes da OLP e sob a liderança de Yasser Arafat. A Autoridade Palestina será pela primeira vez citada em uma resolução da ONU em 14/12/1994, na resolução 49/62(D):

Notando com satisfação a retirada do exército israelense da Faixa de Gaza e da área de Jericó, em conformidade com os acordos alcançados pelas partes, e a iniciação da Autoridade Palestina nessas áreas”.

Note que Israel desocupou Gaza na época, cedendo o controle para a Autoridade Palestina.

As primeiras eleições gerais palestinas foram registradas na resolução 51/26, de 4/12/1996:

Observando também com satisfação a realização bem-sucedida das primeiras eleições gerais palestinas”.

resolução 52/250, de 7/7/1998,

confere à Palestina, na qualidade de observadora, […] direitos e privilégios adicionais de participação nas sessões e trabalhos da Assembleia Geral.

Mas, por incrível que pareça, a primeira menção explícita a uma solução de dois Estados vai ocorrer somente na resolução 57/110, de 3/12/2002, quase 10 anos depois da assinatura dos Acordos de Oslo. Esta resolução repercute uma outra do Conselho de Segurança, a 1397, de 12/3/2002, que

afirma a visão de uma região em que dois Estados, Israel e Palestina, vivam lado a lado, dentro de fronteiras seguras e reconhecidas”.

É significativo que esta resolução do CS tenha sido aprovada por 14 votos, com uma única abstenção, a da Síria, único representante árabe no CS naquele ano. Esta resolução agradece os esforços do príncipe saudita Abdullah, demonstrando que o mundo árabe estava dividido sobre a solução de dois Estados.

Esta divisão se refletiu dentro da governança palestina. A resolução ES-10/12, de 19/9/2003, insta

a Autoridade Palestina a tomar todas as medidas necessárias para acabar com a violência e o terror”.

A partir de então, a ONU, em várias resoluções, reconhecerá essa divisão entre os palestinos, e apelará pela unidade palestina, sem a qual torna-se difícil o estabelecimento de um Estado funcional. Alguns exemplos:

·         Resolução 62/83 de 10/12/2007: “Expressando preocupação com a tomada ilegal de instituições da Autoridade Palestina na Faixa de Gaza, em junho de 2007, e apelando ao restabelecimento da situação até aquela que existia antes de junho de 2007, para permitir a retomada de um diálogo para a restauração da unidade nacional palestina.” Essa preocupação será repetida desta mesma maneira em resoluções sucessivas até 2010.

·         Resolução 64/19, de 2/12/2009: A Assembleia “acolhe o plano da Autoridade Palestina para a construção das instituições de um Estado Palestino num período de 24 meses, como demonstração do seu sério compromisso com um Estado independente que proporcione oportunidades, justiça e segurança ao povo palestino e seja um vizinho responsável de todos os Estados da região.” Este mesmo palavreado será repetido até 2013, mas já sem a menção aos “24 meses”.

·         Resolução 66/17, de 30/11/2011: “Expressando a esperança de um progresso rápido no sentido da reconciliação palestina para a restauração da unidade palestina, sob a liderança do Presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas.” Esse apelo à unidade em torno de Abbas será repetido em várias resoluções sucessivas até 2022.

·         Resolução 69/242, de 19/12/2014: “Salientando, a este respeito, a importância do exercício efetivo por parte da Autoridade Palestina das suas plenas responsabilidades governamentais na Faixa de Gaza em todos os domínios, incluindo através da sua presença nos pontos de passagem de Gaza.” Este mesmo apelo será repetido em resoluções sucessivas até 2023.

·         Resolução ES-10/20, de 13/6/2018: “Incentiva a tomada de medidas concretas no sentido da reconciliação intrapalestina, nomeadamente em apoio dos esforços de mediação do Egito, e medidas concretas para reunir a Faixa de Gaza e a Cisjordânia sob o legítimo Governo palestino e assegurar o seu funcionamento eficaz na Faixa de Gaza”. Este mesmo palavreado é usado em resoluções sucessivas até 2022.

Este é, com certeza, um problema praticamente intransponível para o estabelecimento de um Estado palestino. Não porque exista essa divisão, afinal, divisões existem em todos os países, e mesmo guerras civis, e esses países não deixam de sê-lo por conta disso. O problema é que o Hamas se configura, de fato, em um governo próprio, não em um sub-governo subordinado à Autoridade Palestina. Não são à toa os apelos da ONU pela unidade.

E, para complicar a situação, o governo do Hamas, ao contrário da Autoridade Palestina, não reconhece o Estado de Israel. O Hamas é a OLP de antes dos Acordos de Oslo. Reconhecer o estado da Palestina, nessa situação, é reconhecer exatamente o quê? Afinal, os dois governos, o do Hamas e o da Autoridade Palestina, são legítimos representantes das populações que vivem em Gaza e na Cisjordânia, respectivamente. Não há uma unidade e um grupo rebelde, há, de fato, dois governos. O problema está nessa disfuncionalidade, o que faz com que Gaza e Cisjordânia sejam, na prática, dois Estados separados. O que estaria sendo reconhecido, afinal? Segundo a definição de Max Weber, nenhuma instituição palestina, hoje, tem o monopólio da força dentro do seu território.

Mas este não foi um obstáculo para que, até hoje, 139 países reconhecessem o Estado da Palestina, entre eles o Brasil, em 2010, no apagar das luzes do segundo governo Lula.

Estadão, 04/12/2010, informando sobre o reconhecimento do Estado da Palestina pelo Brasil

Dentre os países que ainda não reconheceram o Estado palestino estão Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Camarões, Canadá, Cingapura, Coreia do Sul, Croácia, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Israel, Itália, Japão, México, Noruega, Nova Zelândia, Panamá, Portugal, Reino Unido, Suíça, entre outros. Ou seja, basicamente o mundo ocidental.

A Palestina pediu oficialmente admissão à ONU em 23/9/2011, e foi reconhecida como um Estado observador não-membro das Nações Unidas pela resolução 67/19, de 29/11/2012. Esta resolução foi aprovada com 72% dos votos. A diferença desta resolução para a resolução 3237, de 22/11/1974, é que, na época, não se falava de um “Estado observador não-membro”, mas simplesmente um “observador”. E, na época, era a OLP o observador, hoje o Estado da Palestina é representado pela Autoridade Palestina.

Encerro este capítulo com um editorial do Estadão, publicado em 20/04/2024, a respeito do veto dos Estados Unidos, no âmbito do Conselho de Segurança, ao reconhecimento da Palestina como um estado membro da ONU. Foi a primeira vez que o Conselho de Segurança levou a voto esta resolução, desde o pedido de admissão feito em 2011. Foram 12 votos a favor (incluindo Japão e Coreia do Sul, que ainda hoje não reconhecem o Estado palestino), o que ultrapassa os 9 votos necessários para aprovar a resolução. No entanto, os Estados Unidos vetaram a resolução, repetindo o seu posicionamento desde sempre, que antes de aprovar a Palestina como membro permanente da ONU, é preciso negociar um acordo de paz com Israel.

Segundo o editorial,

um reconhecimento formal do Estado palestino na ONU não trará soluções práticas para problemas de soberania, controle territorial e muitos outros, sem as quais um Estado palestino é inviável”.

O editorial termina com essas palavras:

[…] muito mais relevante que um reconhecimento protocolar do Estado palestino em Nova York é a construção de seus alicerces no Oriente Médio”.

O problema é que não existe um Estado palestino, existe a aspiração a um Estado palestino. Israel só foi reconhecido como membro da ONU um ano depois da sua declaração de independência, quando ficou claro que havia um Estado. A Palestina, hoje, é mais uma ideia romântica do que propriamente um conjunto de instituições que possa ser denominado de Estado.


Apêndice: as cartas da OLP de 1964 e 1968

A seguir, a íntegra das duas versões da carta de fundação da OLP. Organizei os artigos de modo a fazer um paralelo, e hachurei os artigos que foram cancelados após os acordos de Oslo, segundo carta de Yasser Arafat ao então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. Ao ler a coluna de 1964, tenha em mente que Gaza e Cisjordânia pertenciam ao Egito e à Jordânia respectivamente, o que nos faz perguntar novamente: a que território a OLP se referia? (os grifos são meus)


[1] A área de Himmah era um território no nordeste de Israel que, nesta época, estava sob controle da Síria.

[2] Fonte: https://www.jewishvirtuallibrary.org/international-recognition-of-israel


Confira os artigos desta série:

1.       Visão geral das votações – o grau de alinhamento dos países a Israel

2.       O direito de regresso dos palestinos

3.       Os direitos inalienáveis dos palestinos

4.       A propaganda é a alma do negócio

5.       A UNRWA

6.       Israel, de amante da paz a pária internacional

7.       A condenação ao terrorismo

8.       A OLP e o Estado Palestino

9.       Jerusalém

10.   A busca pela paz

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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