Opinião

O Facebook errou, mas acertou

Mark Zuckerberg materializou a tese de Marshall McLuhan, que preconizou a aldeia global que liga o indivíduo ao mundo. Zuck tirou da imprensa a primazia da notícia e pariu uma praga que ganhou o nome de fake news, por causa de um código de ética difuso e oportunista. Vale tudo, ou quase tudo. Corpos nus não pode, em nome de um moralismo hipócrita e decadente.

Seu brinquedinho deu voz a milhões de personagens que buscavam espaço, aproximou pessoas, organizou grupos de interesses e elegeu presidentes.

O primeiro político que enxergou o potencial de votos via Facebook foi Barack Obama. Num movimento inédito, ele juntou seu poder de comunicação à tecnologia e explodiu nas redes sociais. O fenômeno fez escola: elegeu seu sucessor e, assim como o até então obscuro deputado Jair Bolsonaro, no Brasil.

Agora, depois de assistir Donald Trump organizar um atentado contra o Capitólio – que deixou cinco mortos, Zuck decidiu impor limites. Foi o bastante para que a tese da censura viesse à tona.

Recomendo aos incrédulos os vídeos, larga e livremente disponíveis nas plataformas digitais, que exibem a convocação.

O limite veio tarde, porque a liberdade sem responsabilidade já está radicada na cultura contemporânea.

Nos EUA, um atentado ao Capitólio; no Brasil, milhões de pessoas renunciando a vacinas que erradicaram doenças gravíssimas, e na hipótese mais branda vai saturar o sistema de saúde, e na pior, num futuro próximo, vai trazer ao mundo crianças que jamais terão uma vida normal, ou vão contrair doenças que podem levá-las à morte precoce.

As redes sociais se transformaram em terra de ninguém. Já vi, num grupo de bairro, um sujeito vendendo dinheiro falso. Em sã consciência, ele exerceu seu direito à liberdade de expressão?

Uma coisa é transmitir uma informação consolidada, outra coisa é cometer crimes contra a humanidade. Isso não é liberdade de expressão. Isso é licença para matar, nos EUA e no Brasil.

Discutir a liberdade de expressão não é tarefa simples. Precisa colocar à margem as paixões, as escolhas partidárias e carece de uma noção mais apurada no campo antropológico, sociológico e até psicológico.

Não existe liberdade sem responsabilidade. É do jogo democrático: há direitos mas, na mesma proporção, há deveres, e até onde entendem os maiores e melhores especialistas sobre o tema, ainda assim é o melhor sistema político e social.  

Antes da explosão exponencial das redes sociais, muitos já tentaram burlar esse sistema para extrair vantagens pessoais. Quem tiver curiosidade, pesquise a história de Jayson Bair, que inventava fontes para corroborar suas teses. Era famoso, prestigiado e incensado. Foi do céu ao inferno.

Um jornalista brasileiro foi mais além: adepto do jornalismo mundo cão, ele produzia grandes assassinatos para chegar à frente e, hipoteticamente, dar a notícia em primeira mão.

O que Bolsonaro e Trump fazem em redes sociais nada tem a ver com liberdade de expressão. Mas de técnicas de convencimento e manipulação da mais sórdida natureza.

Eles colocam a vida de seus compatriotas em risco, cujo único objetivo é a própria permanência no poder. Particularmente, o que Bolsonaro está fazendo com as vacinas é da mais cruel tirania e sordidez. Usa a vida de pessoas crédulas para seus objetivos.

Agora, percebendo uma derrota homérica para o governador de São Paulo, João Doria, na corrida pela vacina, suplica por um lote irrisório de dois milhões de doses, vindas da Índia, o suficiente para produzir a foto histórica, e não exatamente para salvar vidas. Mas a súplica foi por carta, e não pelas redes sociais. Muito conveniente.

Antes, recusou um lote de 70 milhões de doses da Pfizer, segundo o próprio fabricante. Mas a recusa foi pelas redes sociais, porque isso agradava seus adoradores e reforçava sua tese.

Antes da liberdade de expressão precisamos falar de responsabilidade, da liturgia dos cargos oficiais, de respeito e governança.

A liberdade de expressão é muito mais do que a permanência de mentes doentias como Bolsonaro e Trump em redes sociais.

Talvez os limites de Zuckerberg tenham chegado tarde demais. Limites, reforça-se, seletivos. Haja vista que vídeos da deputada Bia Kicis ensinando a burlar o uso de máscaras continuam circulando, em manifestação explícita de absoluta irresponsabilidade.

Exemplos como esse existem às centenas, ainda que estudos produzidos por gente que pesquisou cientificamente demonstrem que a máscara ainda é um método eficaz na prevenção de contágio pelo novo corona vírus.

Pode ser que as futuras gerações avaliem os riscos de permitir que se governe por redes sociais. Pode ser que não. No segundo caso, vírus letais como Trump e Bolsonaro vão corroer as formas de sociedade vigentes. Zuck é o criador que foi engolido pela criatura.

Silvana Destro

Silvana Destro é jornalista, voltada à comunicação corporativa há quase três décadas, atualmente com forte atuação em gerenciamento de crises de imagem e reputação. Mãe do Pedro, do João e avó de Maria Clara.

Artigos relacionados

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo
Send this to a friend