Mudamos de fase. Repito.

“O Supremo Tribunal Federal não é o árbitro exclusivo do jogo democrático. Cumpre papel crucial na proteção da Constituição, mas a vitalidade democrática exige que todos os atores – Executivo, Legislativo, partidos, imprensa e sociedade civil – atuem dentro das regras do jogo.”
Essa fala me veio imediatamente à mente quando li, ontem, a notícia sobre a agressão sofrida pela filha do ministro, Melina Fachin, professora e diretora do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que teria sofrido xingamentos (“lixo comunista”) e uma cusparada. Um mês após o ministro ressaltar que a democracia exige a participação de diversos atores (não, apenas, o STF), e que todos devem atuar dentro das regras do jogo, é justamente sua filha que se torna alvo de violência fora delas.
O episódio, relatado pelo marido da professora em rede social, repercutiu em diversos veículos de imprensa. Seguiram-se manifestações de repúdio de universidades, da OAB, e de associações de classe como a AJUFE. Na UFPR, 87 docentes se pronunciaram em nota de desagravo. Dias antes, outro episódio lamentável já havia ocorrido na instituição: um grupo de estudantes bloqueou o acesso ao prédio da Faculdade de Direito para impedir a realização do evento “O STF e a interpretação constitucional”, que teria a participação do vereador curitibano Guilherme Kilter (Novo) e do advogado Jeffrey Chiquini. Parte dos alunos classificou a atividade como “antidemocrática”.
Difícil normalizar situações como essa. Cursei Direito em uma universidade federal nos anos 90 e a convivência com ideias divergentes era regra que nunca vi sendo transigida. Posicionamentos políticos pessoais nunca foram motivo de hostilidade. Os anos 2000 em diante, pelo visto, terão como um de seus marcadores a crescente hostilidade e intolerância no ambiente que deveria ser justamente o mais aberto ao enfrentamento das ideias no campo do debate.
Sobre o ocorrido, subscrevo o que escreveu o advogado Ricardo Alexandre da Silva, mestre e doutor pela UFPR, em sua conta no Instagram:
“Nada justifica essa agressão. Divergências devem ser resolvidas no plano institucional; críticas e debates, pela argumentação – jamais com violência. Quem apoia barbaridade assim é tão autoritário quanto aqueles que receberam Rodrigo, Kilter e Chiquini com cusparadas, cotoveladas e pontapés. Pessoas dignas não desumanizam adversários políticos. Quem o faz é bárbaro – esteja à direita ou à esquerda. Minha solidariedade à professora Melina Fachin.”
Acrescento: não considero este um caso isolado. Quem leu minhas últimas postagens, incluindo o último texto publicado neste blog, conhece meu posicionamento. Em um dos textos, tratei do uso do argumento ad hominem contra o voto divergente do ministro Luiz Fux, e recordei quando uma turba tentou intimidar o ministro Teori Zavascki após a decisão dos grampos envolvendo a ex-presidente Dilma Rousseff. Em outro, ao refletir sobre a bárbara execução de Charlie Kirk enquanto debatia na Universidade de Utah, denunciei o processo de desumanização que antecedeu seu assassinato e afirmei que ele não foi morto por sua defesa da Segunda Emenda, mas no exercício da Primeira: a liberdade de divergir, falar e debater. Chocante. Precisamos aprender algo com isso.
Repito: mudamos de fase. Não é mais polarização, é radicalização.
Demoniza-se a divergência.
Desumaniza-se o adversário.
E, no fundo do poço, apela-se à violência.
Felizmente, desta vez, o episódio não custou uma vida. Até quando vamos “pagar para ver”? Será que vamos reservar nosso repúdio apenas às vítimas com as ideias e posições políticas com as quais concordamos?
A seletividade da indignação só alimenta o pêndulo que oscila de um extremo ao outro. Quantas vezes o erro alheio é usado como álibi para justificar os próprios?
A violência no debate público jamais pode ser normalizada. Não importa se você se considera de esquerda, direita ou centro: num mundo em que a violência passa a ser aceita como forma de expressar discordância política ou ideológica, ninguém está seguro. Basta. Repito.
P.S. ao publicar o texto que serviu de base para esse em minha página no Facebook, foi observado que a única fonte do incidente é o advogado Marcos Gonçalves, marido da professora, e que não há registros em vídeo ou foto. Pois bem, um pequeno esclarecimento: para os fins a que me proponho, isso não reduz a gravidade do que foi repercutido por diversas fontes. Sendo a vítima uma docente, cabe à UFPR apurar os fatos no âmbito administrativo ou, mesmo, para ajudar na apuração, caso disponha, p.ex., de câmeras com registros do ocorrido. Outras providências, em diferentes esferas, poderão ser adotadas pela própria professora. O meu foco não é especular sobre autoria e, sim, refletir sobre o que o episódio revela em termos de radicalização no debate público.