Brasil

Sobre patrimonialismo e auxílio-moradia

A Associação Brasileira de Juízes federais anunciou que a classe poderia entrar em greve caso o benefício do auxílio moradia fosse excluído de seu contracheque. A procuradora geral da República, Raquel Dodge, emitiu parecer favorável ao penduricalho, que também beneficia o Ministério Público. Nada poderia ser mais decepcionante nos tempos atuais do que ver funcionários públicos, justamente elogiados pelo seu zeloso trabalho técnico no combate à corrupção, sucumbirem à tentação corporativista.

O pano de fundo para tamanha cara de pau, muitas vezes não percebida pelos seus protagonistas, é a maldita cultura patrimonialista brasileira, onde público e privado se entrelaçam em uma relação promiscua, nada republicana, e as pessoas naturalmente valem-se da exploração do que é público para obtenção de benefícios pessoais.

Certamente a maioria dos beneficiários desse mimo de R$4.300, vinte e nove vezes maior que o benefício médio unitário concedido pelo bolsa família, o acham justo. Seria uma compensação à falta de aumento salarial. Com tanta gente sem emprego ou reposição de salário há anos, por que privilegiar uma casta com tão polpudo presente, em detrimento do resto dos cidadãos comuns? O orçamento público, sustentado pela arrecadação de impostos, arca com esses custos. Nós pagamos essa conta.

Esse comportamento bebe na mesma fonte que fornece energia aos sabotadores da reforma previdenciária sepultada nesse governo: a elite da burocracia estatal não admite perder seus privilégios, conquistados a duras penas ao longo de décadas alimentando-se no topo da pirâmide do poder. Apesar de vivermos em uma república presidencialista, essa elite burocrática exerce o papel da nobreza em uma monarquia absolutista, recebendo do estado benefícios exclusivos, jamais oferecidos aos demais súditos. Vergonhosa, a intensa reação corporativista dos juízes é filha do patrimonialismo. O estado afinal, ‘deve servir aos seus interesses, conhecendo-lhes direitos exclusivos’ , que não cabem a outros co-cidadãos.

Essa praga contamina toda a sociedade. Historicamente, empresários, por exemplo, em larga medida preferem aproximar-se da ‘elite’ para obter benefícios a focar em ganhos de produtividade e tornar seu negócio mais competitivo. Normalmente, a classe empresarial tem uma relação de submissão ao estado, quase servil. São pouquíssimos registros de confronto de ideias, mesmo quando o direcionamento das políticas públicas nos levava aos ‘pântanos’. No patrimonialismo, é mais fácil adaptar-se ao jogo dos donos do poder do que confrontá-lo. Os exemplos descobertos pela Lavajato escancararam essa situação.

Ser uma praga enraizada há séculos em nossa cultura converte o patrimonialismo em um problema de difícil solução. Infelizmente, a ideia de que o estado pode servir aos interesses pessoais predomina em um país onde individualmente somos cordiais e simpáticos, mas coletivamente mesquinhos e indiferentes. E o fato de que juízes ameaçam fazer greve por causa de um descabido e injusto penduricalho comprova que estamos longe, muito longe, de nos livrar dessa prática.

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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2 Comentários

  1. Apesar de ser histórico, legal etc temos a mania de desvirtuar o português, o próprio nome já diz pra que serviria , porém sempre arrumamos um jeito e o oportunismo do brasileiro em qualquer nível social ou intelectual vence .
    Somos pobres de espírito e caráter .

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