Brasil

O drama de dona Luislinda

Poucas semanas atrás, dona Luislinda Volais era destaque no programa televisivo do PSDB. A baiana foi uma das primeiras juízas negras brasileiras, e a segunda desembargadora no país nessa condição. Ministra dos Direitos Humanos do governo Temer, é uma figura diferente no panteão de políticos homens acima de 50 anos, enrascados em esquemas de corrupção, e que populam a esplanada dos ministérios. Ela se define como de origem pobre, da periferia, adepta do candomblé, de cabelo vermelho e divorciada. É possível imaginar os obstáculos que superou para chegar onde está. Trata-se, no mínimo, de um exemplo de resiliência e obstinação.

Essa semana Dona Luislinda meteu os pés pelas mãos. Indignada com seu salário, contido pelo teto determinados aos servidores públicos, equivalente ao de um ministro do STF, de R$ 33 mil, ela solicitou aumento, através de um racional apresentado em um relatório de 207 páginas. Requisitava que ao salário de desembargadora aposentada se somasse integralmente o de ministra, o que lhe conferiria um total de R$ 61 mil brutos, além dos benefícios usuais a um ministro de estado, que incluem cartão corporativo, apartamento funcional, possibilidade de uso de jatinhos da FAB e diárias quando em expediente fora da cidade, que em 2017 já haviam totalizado mais que R$ 45 mil (ou uma média de praticamente R$ 5 mil mensais).

A reclamante alegou que o ‘miúdo’ salário de R$ 33 mil não era suficiente para cobrir gastos com as picuinhas do cotidiano: cabelereiro, perfurme, um vestidinho aqui e acolá, entre outros, já que ela, na condição de ministra, deveria mostrar-se minimamente apresentável. Também fez alusão à escravatura, comparando inadvertidamente sua função atual a de um trabalho escravo, já que ela recebe pouco mais de R$ 3 mil (que é a diferença entre sua aposentadoria e o salário de um ministro do STF). As declarações, absolutamente infelizes, suscitaram imediatamente reações negativas gigantescas nas redes sociais, a ponto de fazer a ministra retroceder e retirar de pauta o seu pedido.

O dano à sua imagem, porém, já estava feito. O pedido da ministra seguiu uma linha lógica, afinal seu salário de pouco mais de R$ 29mil era relativo à aposentadoria como desembargadora, carreira em que se dedicou por mais de 30 anos. Independentemente de exercer outra atividade, esse valor seria recebido mensalmente. Dessa maneira, dona Luislinda considera que pela função de ministra ela estaria trabalhando quase de graça.

Some-se a isso o fato de que centenas (talvez milhares) de juízes e procuradores Brasil afora recebem mais que o teto, conforme noticiado frequentemente pela imprensa. Não menos grave, na semana passada, o Ministro Marco Aurelio concedeu a 219 juízes e desembargadores potiguares o direito ao auxílio moradia retroativo por alguns anos, que custará R$ 39,5 milhões aos cofres públicos do Rio Grande do Norte e deixará os beneficiários em média R$ 200 mil mais ricos.

Em outras palavras, essa conversa de ‘teto salarial de R$ 33mil’ pode muito bem ser interpretada como falaciosa, tantos são os casos em que ele é desrespeitado, sem qualquer reprimenda. Nesse contexto, a demanda da ministra poderia até ser considerada justa. Afinal, por que ela não pode participar da farra enquanto outros se lambuzam?

Em um país pobre, onde a renda média de um trabalhador é de R$ 2.400 mensais e com 13 milhões de desempregados, as declarações da ministra foram lamentáveis. Afinal, ela está ciente das regras do jogo e não foi obrigada aceitar a função. Contrariamente à sua analogia ao escravagismo, temos aqui um exemplo de trabalho voluntário. Aceitou porque quis. E se a renda total é um problema para a ministra, poderia se dedicar à advocacia, empreendedorismo, carreira universitária, não lhe faltariam opções que garantissem um incremento substancial. Não há réplica plausível para esse argumento.

O raciocínio da ministra esconde alguns problemas endêmicos tipicamente brasileiros: o pensamento de que o orçamento estatal é infinito, como se o governo tivesse uma fábrica de dinheiro sempre disponível para cobrir seus gastos e a ideia, um tanto presunçosa, de que funcionários públicos de alto escalão merecem ganhar como marajás.

Apesar de dinheiro não brotar em árvore e ser oriundo dos impostos que consomem cinco meses dos nossos salários, ninguém pensa nisso na hora de reclamar os seus direitos. E como vivemos em uma sociedade que privilegia direitos em detrimento dos deveres, haja espaço para abrigar gastos bilionários com uma inchada folha de pagamentos e previdenciária de uma casta privilegiada de poucos milhões de funcionários públicos (somente em cargos de comissão são mais de 600mil), cujo salário médio é sempre superior a R$ 10mil mensais, independente do poder a que pertençam.

Entre a elite do funcionalismo, notadamente juízes, promotores e procuradores, muitas vezes ocorre a pretensão de que seus vencimentos devessem se equiparar aos da iniciativa privada. É claro que não. O estado não tem condições de arcar com custos tão altos e quem se dispôs a trilhar uma carreira no serviço público de antemão sabe que não enriquecerá com ela. Em contrapartida, ninguém na iniciativa privada desfruta de estabilidade no emprego, 60 dias de férias por ano, direitos periódicos à licenças prêmios e outros benefícios intangíveis. Dito isso, apenas 1% da força de trabalho brasileira recebe mais que R$ 13 mil mensais. Mas a dona Luislinda não pensa assim, ela acha que o estado deve e pode lhe pagar muito mais. Verdade seja dita, não é a única a defender esse ponto de vista e podemos dizer que essa mentalidade é o embrião do comportamento corrupto: ‘se eu mereço e não me pagam, então…consigo por outros meios’.

Ao retroceder no pedido de aumento, dona Luislinda acatou um salário que considera baixo para suas atribuições. Será que ela aguentará se submeter a esse tipo de ‘humilhação’ até o final do mandato, por mais um ano e três meses? Ou, desencantada e endividada, pedirá as contas e retornará à Bahia? Um drama diferente em magnitude daquele que milhões de brasileiros passam todo mês, mas ainda assim…um ‘drama’. À ministra, recomendamos três doses diárias de ‘Semancol’ e boa sorte.

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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