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Sete músicas para minhas sete décadas

Tinha preparado este texto em março do ano passado, para comemorar meus setenta anos. Só que, na mesma época, recebi a notícia de que estava com câncer na próstata e, confesso, fiquei nocauteado em pé. A ideia de um texto lírico, sobre música e poesia, perdeu totalmente o sentido.

Hoje, pouco mais de um ano depois, a evolução do caso me permite sonhar com um novo futuro. Em paralelo a isto aconteceu um monte de coisas na minha vida. Foi um ano de muito silêncio e muita dor física. E uma enorme reflexão sobre os meus valores. Enfim, hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe, e só levo a certeza de que muito pouco eu sei, eu nada sei… prá quem reconheceu a letra, “Tocando em frente”, de Almir Sater e Renato Teixeira, é a música da minha vida. Não a coloquei entre as sete porque seria covardia.  

Seguem as sete músicas, e o critério foi serem pouco conhecidas. Verdadeiras pérolas que talvez alguns nem saibam da existência. A ordem é totalmente aleatória, não é uma classificação. Todas têm pelo menos um vídeo. Vamos lá;

1 – Aos nossos filhos (Ivan Lins e Victor Martins)

Já me fez dar vexame e chorar em público há muitos anos. A humildade que só um pai tem ao pedir que “quando colherem os frutos, digam o gosto prá mim”, me emociona. Mostra também a visão da perenidade; perdoem pelos dias de hoje, mas vai passar. Os dias da ditadura eram difíceis, os atuais também são, mas tudo isto vai passar, o ser humano sempre melhora, meus filhos são melhores do que eu, meus netos serão melhores ainda. A interpretação da conterrânea (e gremista!) Elis Regina é fantástica.

2 – Trem-Bala (Ana Vilela)

É incrível a sensibilidade desta moça. E toda a letra fechou com o meu momento. Ouvir que quando menos se espera a vida já ficou prá trás, quando se completa 70 anos e se enfrenta uma doença séria, é uma advertência inesquecível. Hoje seguro meus netos no colo sempre que posso (mesmo que isto arrase com o que sobrou da minha coluna). Abraçar meus pais já não tem mais jeito. Enfim…

3 – Mordaça (Paulo César Pinheiro e Eduardo Gudin)

Paulo Cesar Pinheiro é um talento muito pouco reconhecido na MPB. Esta música chegou a fazer sucesso nos idos de 1976, por aí, mas hoje está injustamente esquecida. O verso “O importante é que a nossa emoção sobreviva” é o mais bonito de toda a história da MPB (opinião pessoal). Composta na época da ditadura, infelizmente voltou a ser atual, nestes tempos de ameaça diária à liberdade de expressão. E, hoje, me dá a mesma esperança de que a emoção vai sobreviver, e a felicidade vai amordaçar esta dor secular. Porque nada é maior do que a poesia. Há um vídeo-raiz, tecnicamente horroroso, mas com direito até a um poema extra do autor (ver https://www.youtube.com/watch?v=U_KyeGrFAp0 ). Prá curtir a música com mais qualidade vale ver a versão consagrada pelo MPB-4.

4 – Paz no meu amor (Luiz Vieira)

O menino passarinho que voou para os braços de Deus em 2020, aos 91 anos, é outro talento pouco reconhecido. Esta música é, certamente, a mais comovente declaração de amor que já vi alguém fazer. O vídeo é muito legal, mostra Luiz já bem velhinho, mas com sua energia inesgotável, cantando no programa de Inezita Barroso, outra que também já partiu. Vale conferir.

5 – Resposta ao tempo (Aldir Blanc e Cristóvão Bastos)

Aldir Blanc é um gênio reconhecido por sucessos como “O bêbado e o Equilibrista”, “Dois prá lá, dois prá cá” e outros. Mas para mim esta é a sua melhor letra. A ideia do poeta embriagado, discutindo com o tempo, é antológica. O clipe legendado e produzido com muita sensibilidade ressalta a beleza dos versos. E Nana Caymmi arrasa, como sempre.

6 – Umas e outras (Chico Buarque)

Perdida na imensidão da obra de Chico, esta pérola que narra com enorme sensibilidade o encontro na rua entre uma freira e uma prostituta e descobre as duas unidas pela mesma dor, é maravilhosa. O vídeo, com interpretação da extraordinária Clara Nunes, que nos deixou precocemente, é uma raridade.

7 – La Cigarra (Poema de Maria Elena Walsh, musicado por Mercedes Sosa e com versão para o português por Renato Teixeira)

Esta música acabou entrando agora, porque foi o hino dos meus dias de dor, o som do meu silêncio. A ideia da volta, como um sobrevivente que regressa de uma guerra, como uma cigarra que canta depois de um ano embaixo da terra, me animava todo dia.

E o pedaço que Renato Teixeira enfiou na letra original (“e depois de tanto pranto, eu aos poucos percebi, que meu sonho não tem dono”) me lembrava que, mesmo no fundo do poço, sonhar era preciso. Os sonhos não envelhecem, conforme profetizou Flávio Venturini.

O dueto de Renato com o grande cantor argentino León Gieco é pura e simplesmente maravilhoso.

Epílogo

Enfim, escolhi sete músicas, como podiam ser vinte, ou até setenta, uma para cada ano. Todas me emocionam desde a primeira vez que ouvi. E espero que continuem me emocionando pelas próximas décadas… até onde der.

Vida que segue.

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

4 Comentários

  1. Hervé, obrigado por dividir suas sete músicas preferidas. Bom gosto e uma síntese , breve, de um caminho trilhado, que me parece, de sensibilidade, respeito ao próximo e vida. O começo da coletânea com a música “Como Nossos Pais”é arrebatadora. Muito legal . Parabéns.

  2. Grato pela recordações, passei também por um câncer, dizem que raro em homens. No entanto, depois cai na real, constatei que mama todos temos e que esta doença é igual, independente do sexo. Excelente texto, musicas e letras e, sim, poderiam ser 70, ou ainda, uma para cada mês. Há muitas perolas, muitas desconhecidas, pois não foram vinculadas na mídia e, que nos fazem viajar e relembramos de que somos seres humanos e que na vida respeito, sensibilidade e paciência são cruciais e servem de inspiração aqueles que se perderam pelo caminho. Muito bom poder ler seu texto e ouvir as canções que também marcaram fases de minha vida.

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