Opinião

Charlie Kirk (1993-2025)

Eu nunca tinha ouvido falar em Charlie Kirk, até esta semana. Conheci sua existência justamente quando ela chegou ao fim. Um fim brutal. Um desses instantes em que somos confrontados com um retrato monstruoso do Zeitgeist, do espírito do tempo que compartilhamos.

📍Charlie foi assassinado enquanto discursava na Universidade de Utah.

O único extremista é, evidentemente, o atirador. Nada mais precisaria, a rigor, ser dito ou escrito para explicar a quem quer que seja o quão chocante e injustificável é a execução a sangue frio de um jovem de 31 anos, debatedor no campo das ideias, enquanto falava o que pensava em uma universidade. Sigo no meu exercício de reflexão. O essencial, todavia, está dito.

Fundador do movimento Turning Point USA, Kirk tinha forte presença nas redes sociais: somava mais de 14 milhões de seguidores e já foi classificado pelo veículo Axios como um dos 10 maiores influenciadores do mundo em engajamento. Em 2018, entrou para a lista Forbes Under 30, na categoria Lei e Políticas Públicas, aos 25 anos. Kirk promovia o debate pacífico, restrito ao campo das ideias, justamente no espaço que deveria ser o mais livre e que se tornou, nos últimos anos, o mais hostil: a universidade.

O assassino gravou em uma das balas: “Hey, fascista! Pega!”.

Li que em 2018, Bari Weiss alertou sobre o hábito da esquerda de rotular como “fascistas” aqueles com quem se discorda. Ela chamou esse efeito de “o achatamento moral da Terra”.

“Vou de faculdade em faculdade abrindo microfone durante três horas para qualquer um debater comigo. Devo ser o pior fascista do mundo”, disse Charlie Kirk.

Insano.

Não por acaso, a frase de Ada Lluch se espalhou nestes dias:

“Eles não matam você por ser fascista. Eles chamam você de fascista para poder te matar.”

Quantas vezes já vimos esse expediente no debate público, inclusive no Brasil?

Eu não esqueço.

Em todas as campanhas políticas depois dos anos 2000 para cá.

Quando as ruas de Caracas ficaram manchadas pelo sangue dos estudantes venezuelanos que ousaram se levantar contra a tirania de Maduro, foram chamados de “fascistas”.

Quem são os extremistas?

Eu também não esqueço o massacre do Charlie Hebdo: doze mortos, sete feridos. Os corpos ainda estavam estendidos no chão quando começaram as manifestações no tom de “horrível o que aconteceu, mas…”.

Mas o quê? Novamente: o que pode justificar assassinato calculado a sangue frio com motivação torpe?

A revista publicava caricaturas satirizando o profeta Maomé, eis a motivação fundamentalista para os assassinos da organização terrorista que assumiu o atentado. Quem colocou o “mas” naquela frase, consciente ou não, justificou o ataque. O mesmo roteiro se repetiu meses depois na França, em Londres, na Bélgica. E então veio 7 de outubro, em Israel. Minha “imunidade” contra justificativas cínicas já não foi suficiente diante da monstruosidade daquele massacre, e do coro de tentativa de justificativas para o que é injustificável, inclusive por parte de
governos. Abominável. Repito.
Agora, quando leio “é triste o que aconteceu, mas (!) Charlie Kirk defendia a Segunda Emenda”, percebo que algo mudou em mim. Talvez seja a exaustão ou a nítida sensação de que cruzamos uma linha vermelha que não pode mais ser tolerada. Tenho me questionado: até onde minha tolerância no debate público deve ir com essas pessoas que relativizam assassinatos, massacres?

Charlie Kirk não foi morto por causa da Segunda Emenda. Ele foi morto por fazer uso da Primeira Emenda, por exercer e estimular o direito de falar, debater, discordar. Isso o transformou em alvo.

Surreal.

A Primeira Emenda é o coração da América, a “cláusula da confiança” que sustenta a democracia como uma espinha dorsal, garantindo que todas as outras liberdades existam. Quando um renomado jovem de 31 anos é assassinado em pleno exercício desse direito, não é apenas uma vida que se perde. Há um abalo profundo na confiança coletiva, no pacto silencioso de que podemos conviver em sociedade sem sucumbir à barbárie. O assassinato de Kirk fere não só sua família e amigos, o que já é suficientemente grave, atinge também a certeza construída coletivamente de que o espaço público, a universidade, ainda é lugar para a divergência e o debate livre.

Quem tenta justificar o assassinato de Kirk por ele ser “fascista” ou diz que ele era defensor do porte de armas para lhe atribuir, consciente ou não, responsabilidade sobre a própria morte, faz parte do mesmo processo de desumanização que antecedeu o crime. O mesmo se dá quando militantes disfarçados de jornalistas o enquadram como “extremista de direita” ou “apoiador de Trump”. Todos esses são parte do problema, contribuem para a normalização da violência.

Uma turba marca o alvo como “fascista” ou “infiel”. Alguém puxa o gatilho.

Eis a síntese nua, cruel e crua. Basta!
Charlie Kirk era marido de Erika e pai de duas crianças. Conjugar esse verbo no passado foi a parte mais dolorosa de todo este texto.

Aos seus familiares e amigos, minhas preces.

De resto, não costumo dar conselhos. Presumo que interajo com adultos, a quem compete fazer uso do seu livre arbítrio. Farei, todavia, um alerta: se alguém o chama de “fascista” ou “extremista” apenas por discordar de seus votos, de suas falas ou de seus escritos, e ainda se apresenta como “democrata”, cuidado. É o que eu já fazia e, daqui para frente, farei de forma ainda mais atenta.

“Quem com monstros luta deve acautelar-se para não se tornar também um monstro; e quando olhas longamente para o abismo, o abismo também olha para ti.” É o alerta de Nietzsche, em Assim falou Zaratustra. Costumo tê-lo em perspectiva.

A desumanização e a naturalização da violência são, muitas vezes, esse processo de “virar monstro ao combater monstros”. Apresentar qualquer justificativa para a violência que tirou a vida de Charlie Kirk é desdenhar da vida humana. E é um perigo que não pertence a uma ideologia ou a outra, mas à condição humana.

P.S. Segue uma recomendação de leitura: o artigo de Ezra Klein, publicado na Folha de S.Paulo (“Charlie Kirk fazia política exatamente do jeito certo”). Mesmo pensando de forma diferente de Kirk, ele reconhece o valor de sua prática política: abrir o microfone, o diálogo, ouvir, tentar convencer com argumentos. É um alento. Sua admiração honesta, em campo oposto, é uma virtude humana e democrática que não pode ser executada junto com Charlie Kirk.

É preciso aprender algo com isso:
“(….) Você pode não gostar de muito do que Kirk acreditava, e a seguinte afirmação ainda é verdadeira: Kirk praticava política exatamente da maneira correta. Ele aparecia em universidades e conversava com qualquer pessoa disposta a falar com ele. Ele era um dos praticantes mais eficazes da persuasão desta era.
Quando a esquerda pensava que seu domínio sobre os corações e mentes dos estudantes universitários era quase absoluto, Kirk aparecia repetidamente para quebrá-lo. Lentamente, depois de repente, ele conseguiu. (…) Eu não conhecia Kirk, e não sou a pessoa certa para fazer seu elogio fúnebre. Mas invejava o que ele construiu. O gosto pelo debate é uma virtude na democracia. (…) Kirk e eu estávamos em lados diferentes na maioria dos debates políticos. Estávamos do mesmo lado quanto à possibilidade contínua da política americana. Deveria ser um debate, não uma guerra; deveria ser vencido com palavras, não finalizado com balas. Eu queria que Kirk estivesse seguro por ele mesmo, mas também queria que ele estivesse seguro por mim e pelo bem do nosso projeto compartilhado maior.”


Daniela Meneses

Sou carioca, “naturalizada” no nordeste e lotada no Paraíso das Águas, com a família que formei, e é o meu maior patrimônio. O Rio segue em mim. Acredito no uso terapêutico do contato com a Natureza (especialmente o Mar), a Yoga, a Dança, a Corrida, e a Escrita, sendo esta última a razão pela qual mantenho o hábito de “pensar em voz alta” no Facebook. Graduada em Direito há 26 anos e especialista em Direito Constitucional, atuo na área. Humanista e reformista, acredito na efetividade de reformas cíclicas que conduzam ao aperfeiçoamento institucional, assegurando o exercício do conjunto de liberdades e das garantias fundamentais e individuais. A bem da verdade, na minha 1ª postagem no PDB há o suficiente para sintetizar meu “enquadramento”: me alinho aos valores do Iluminismo, da Revolução Gloriosa, das liberdades de crença, expressão, de pensamento, do direito de ir e vir e de propriedade. Por consequência, defendo o Regime Democrático, a Separação dos Poderes, o Estado laico, a Imprensa Livre, os valores humanistas, e o Due Process of Law. No mais, a pretensão adolescente de ser agente secreta (rs) talvez explique um dos meus temas prediletos: geopolítica. O gosto por história, literatura, e filosofia vem da época da escola. Provavelmente, minhas publicações, que representam minha posição pessoal, sem qualquer vinculação institucional, estarão associadas a esse mix. Até agora, estavam restritas para amigos, entre os quais estão muitos dos que fazem parte desse espaço descontraído de troca de ideias, o Papodeboteco.

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