Ordem ilegal não deve ser cumprida. Ou deve?

O caso Alexandre de Moraes – Elon Musk tem sido a última arena de embate entre a esquerda e a direita no País. O último lance foi, como sabemos, o “banimento” do X no Brasil. Assim mesmo, entre aspas, porque é virtualmente impossível banir sites. É como tentar conter a água do mar. Mas enfim, Xandão deve estar se achando o novo Moisés, que separou o Mar Vermelho usando um bastão. O ministro só tem uma caneta, vai que funciona.
O motivo, também como sabemos, vem desde que o X se recusou a derrubar perfis por ordem de Alexandre de Moraes. Segundo a empresa, essas ordens seriam ilegais e, portanto, a empresa não estaria obrigada a obedecê-las. A coisa foi escalando, até que o representante do X foi multado e teve a sua prisão decretada, o que fez Elon Musk fechar a empresa no Brasil. Moraes, então, deu a ordem de abrir o Mar Verm…, quer dizer, de banir o X do País. E cá estamos.
Quem vem acompanhando o debate certamente notou que o ponto principal da discussão entre os dois lados do espectro político é se uma ordem judicial pode ser descumprida. Os que apoiam o STF dizem que sim. Os que são contra, afirmam que uma ordem ilegal pode, ou até deve, ser descumprida. E aí?
Em primeiro lugar, vamos deixar claro uma coisa: a questão aqui é política, não de técnica jurídica. Se os papeis estivessem invertidos, as posições se inverteriam também. Um exemplo? Quando ocorre a invasão de um terreno e há uma ordem judicial de reintegração de posse, a esquerda tende a apoiar a resistência, enquanto a direita empunhará a bandeira da legalidade.
– Ah, mas são situações diferentes! O direito à propriedade é líquido e certo, e, por outro lado, não existe o direito à censura! Proteger propriedade é legal enquanto censurar é ilegal.
Bem, isso é o que falariam os que estão à direita. Já os que estão à esquerda poderiam responder:
– Sim, são situações diferentes! Enquanto o discurso de ódio deve ser cerceado mesmo para a proteção das pessoas e da sociedade, o direito de propriedade é relativo, toda propriedade tem uma função social! Portanto, eliminar o discurso de ódio é legal, enquanto retirar pessoas de um terreno vazio e que não está cumprindo a sua função social é ilegal.
Pois é. Cada qual vai dar pesos diferentes para coisas diferentes. E é aqui que a coisa começa a complicar.
Para tentar avançar, vamos voltar um pouco para o básico. A sociedade se articula em torno de regras. Para que os Homens possam viver em sociedade, é necessário existir um sistema de regras sob as quais os membros dessa sociedade vivem. Se cada um fizesse o que lhe desse na telha, não teríamos uma sociedade, mas uma anarquia. E na anarquia não há colaboração estável entre os Homens, premissa de qualquer progresso. A esse conjunto de regras damos o nome de “lei”.
Mas ter leis claramente não é suficiente. O legislador, por mais que seja presciente, nunca conseguirá abranger todos os detalhes da realidade. Assim, é preciso que haja uma instância que interprete e aplique a lei aos casos concretos. Caso contrário, se cada um interpretasse a lei como quisesse, seria o equivalente a não ter lei alguma. A essa instância que interpreta a lei damos o nome de Poder Judiciário.
Até aqui, a teoria. Na prática, a coisa complica. Duas perguntas inconvenientes precisam ser feitas:
1) Qualquer lei é justa?
2) O Poder Judiciário é perfeito?
Obviamente, a resposta é um rotundo NÃO para ambas as questões. Com relação à primeira, o tribunal de Nuremberg considerou que as leis do regime nazista não eram justas e, portanto, deveriam ter sido desobedecidas. Ou, posto de outra forma, as leis do regime nazista não poderiam servir de desculpa para as atrocidades cometidas, só pelo fato de serem leis.
Com relação à segunda questão, temos hoje mesmo o exemplo do Judiciário da Venezuela, claramente cooptado pelo regime, e que vem tomando decisões viciadas. No caso, suas determinações estão sendo desobedecidas por aqueles que desejam a restauração de um regime democrático no país.
No caso em tela, apesar de muitas referências que tenho ouvido por aí a Nuremberg (o reductio ad Hitlerum é irresistível), o que Elon Musk está fazendo encaixa-se na segunda hipótese. A lei brasileira em si não permite a censura, mas o Judiciário brasileiro encontrou meios de interpretar a lei para derrubar perfis nas redes sociais e, assim, matar o discurso na raiz.
Ninguém é perfeito. E, portanto, não existe justiça perfeita. O que existe é um arranjo precário, que pretende fazer respeitar genericamente os direitos universais do Homem. Como o leitor certamente sabe, há direitos conflitantes, tanto do ponto de vista de seus titulares, quanto do ponto de vista de escala de prioridades. Por exemplo, indígenas e fazendeiros têm direito à propriedade. Quem tem mais direito?
A justiça imperfeita com que devemos conviver inclui um sistema genérico de leis bem-intencionadas e um Poder Judiciário imperfeito, porque formado por Homens. Ocorre que não é somente o Poder Judiciário que é formado por seres imperfeitos. Todos nós comungamos da mesma falta de perfeição. Nossos juízos são tão falhos quanto os dos outros. Nossa visão é tão parcial quanto a dos outros. Vemos coisas que os outros não veem, e os outros veem coisas que nós não vemos.
O arranjo possível e provado ao longo do tempo é esse: um Poder Judiciário que faz a interpretação das leis. Esse arranjo faz parte de um sistema que permitiu o avanço civilizatório nos últimos dois a três séculos. Antes disso, era a ditadura mais ou menos esclarecida. É um sistema perfeito? Óbvio que não. Mas é o estado da arte em termos de civilização.
E agora finalmente chegamos à questão central do imbróglio: existindo um sistema de leis circunstancial que é interpretado por um agente falho, somos obrigados ou não a obedecer às suas determinações? Note que a frase “ordem ilegal não deve ser cumprida” pressupõe que o agente descumpridor da ordem possui uma interpretação da lei superior à do autor da ordem judicial. Assumindo, claro, que a lei é justa, no sentido de respeitar os direitos humanos universalmente aceitos como tais.
Vamos virar novamente o papel do avesso. Tivemos que ouvir durante anos que o processo que condenou Lula foi eivado de ilegalidades. O próprio Supremo chegou a essa conclusão, e “descondenou” o molusco. Mas antes de chegar lá, Lula passou mais de 500 dias na cadeia, mesmo achando que sua prisão foi fruto de uma decisão ilegal. Ok, ele tentou resistir à prisão durante algumas horas, fez um teatrinho e tals, mas, no final, entregou-se. Na verdade, não havia alternativa. Ele não tinha instrumentos para resistir ao cumprimento da decisão judicial. Se ele contasse com esses instrumentos, é possível que tivesse resistido. E que instrumentos poderiam ser estes? Talvez um grande levante popular, com a desobediência de uma parte das forças policiais e militares. Uma guerra civil, portanto.
É neste ponto que Elon Musk introduz um elemento disruptor fora do alcance dos brasileiros, mesmo os mais poderosos, como Lula. Musk está fora do país, fora da jurisdição da nossa Suprema Corte. Sua empresa não tem representação no País, e nem é obrigada a ter. A imensa maioria dos sites abertos aos brasileiros não têm representação no País, e nem por isso estão fora da lei. Aliás, o próprio Bluesky, apresentado como alternativa ao X, não conta com representante no País.
Musk decidiu que as determinações de Alexandre de Moraes, que é o representante do Poder Judiciário, são ilegais e, portanto, não precisam (ou não devem) ser obedecidas. A discussão aqui é a legitimidade de Elon Musk para dizer o que é ou não ilegal. Uma parte da sociedade brasileira, mais à direita, concorda com Musk. Outra parte, mais à esquerda, não concorda. E aqui chegamos ao âmago da questão: aparentemente, apesar de todo o verniz legal, trata-se, na verdade, de um problema político. Não é que exista uma verdade absoluta, divina. Existe, repito, um arranjo precário implementado por agentes falhos. E, no final do dia, manda quem pode e obedece quem tem juízo. Ou, desobedece quem pode, tendo juízo ou não.
E se é assim, não basta que haja leis e um Poder Judiciário. É preciso que este arranjo conte com legitimidade política. Caso contrário, chegará uma hora em que a desobediência civil será a norma, pois esses arranjos da sociedade são instáveis por natureza.
Para ter e preservar essa legitimidade política, é necessário usar o poder com inteligência e parcimônia. Não somos robôs que usam algoritmos determinísticos para decidir se uma determinada ordem judicial é legal ou ilegal, se deve ou não ser obedecida. Somos seres humanos falhos, que se posicionam de acordo com suas convicções e suas visões da realidade. A coerção da lei e do poder tem limites. Os limites da aceitação social.
Marcelo,
Como escreve, um texto bom que pede reflexão, essa pendenga entre STF e Musk é política, assim, caberia ao Congresso Nacional ter aprovado uma lei para a internet como fizeram os europeus. Se a lei atual está disforme e desatualizada, pois foi engendrada pelos idos de 1950, penso que não tem como ser atualizada para a sociedade atual, e principalemnte para o meio virtual, senão com uma Lei Virtual adequada.
Sou contra a censura, mas não é possível uma pessoa sofrer “bullying” nas redes, ter que entrar na justiça, e esperar semanas por uma decisão. Veja como exemplo, o caso do Telegram, onde o dono está preso na França por permitir que pedófilos distribuam imagens e cooptem adolescentes. Não é possível que um jovem de um colégio tradicional de São Paulo sofra “bullying” presencial e virutal, durante semanas, chegue ao suicídio e fique-se esperando uma decisão seja do colégio ou da justiça. É preciso um freio.
Todos tem o direito de se expressarem , mas é preciso preservar a Vida. Quando o limite dessa preservação for ultrapassado, deve-se tomar uma atitude imediata.
A lei atual é de 2014, o Marco Civil da Internet, portanto não é dos idos de 1950. O art. 21 já responsabiliza as redes por não retirarem, sem ordem judicial, cenas de nudez de terceiros. O problema da revisão do Marco Civil é que extrapola em muito os casos de bullying de adolescentes. Se ficasse somente nisso, não haveria um centésimo da celeuma sobre o tema. A questão é que querem facilitar a retirada da Internet de conteúdos políticos, é aí que mora o problema.