Gulherme Boulos – uma retrospectiva
O ex-coordenador do MTST e deputado federal Guilherme Boulos segue, ao que tudo indica, para a sua terceira derrota seguida em eleições para o Executivo. A primeira foi em 2018, em sua estreia como o candidato do PSOL à presidência, a segunda foi em 2020, em sua primeira tentativa de assumir o comando da cidade de São Paulo e a terceira agora em 2024, novamente disputando a prefeitura de São Paulo.
Boulos não deve desanimar. Lula, seu mestre, precisou disputar um cargo no Executivo nada menos do que cinco vezes antes de ser eleito pela primeira vez, em 2002. No entanto, para que conseguisse esse feito, Lula precisou “amaciar” a sua figura de sindicalista feroz e baderneiro, inaugurando a persona “Lulinha Paz & Amor” desenhada pelo seu marqueteiro de então, Duda Mendonça. Guilherme Boulos está, neste momento, tentando fazer o mesmo.
Nesse artigo, vamos relembrar um pouco da trajetória do ex-chefe do MTST, e verificar que Boulos vai precisar trabalhar muito para atingir esse objetivo, apesar de toda a ajuda prestimosa do colunismo político, que trata Boulos como um ator normal do jogo político.
Seção 1: Uma breve retrospectiva da ação do MTST sob a liderança de Guilherme Boulos
Para facilitar o entendimento, vamos dividir a atuação de Guilherme Boulos na liderança do MTST em três grandes áreas: invasões de terrenos, invasões de edifícios públicos e privados e interrupção de vias.
Invasão de terrenos
Esta lista não é exaustiva, listaremos aqui apenas as invasões que alcançaram as manchetes dos jornais.
Julho/2003: terreno da Volkswagen, em São Bernardo do Campo.
O MTST foi fundado em 1997, mas Guilherme Boulos, que ingressou na organização em 2002, aparece pela primeira vez nos jornais em julho de 2003, em uma reintegração de posse de um terreno invadido da Volkswagen, em São Bernardo. Como modus operandi, houve a invasão e a reclamação de que a empresa “é intransigente” ao não querer negociação com os invasores.
Um detalhe: em 2003, Boulos tinha apenas 21 anos de idade, e ainda cursava filosofia na USP. Sua carreira de invasor de terrenos começou realmente cedo.
Fevereiro/2004: terreno conhecido como “Pinheirinho”, em São José dos Campos, pertencente à massa falida da empresa Selecta, do grupo Naji Hahas. Este terreno foi desocupado em janeiro de 2012, em uma operação em que lideranças de partidos de esquerda fizeram de tudo para ganhar as manchetes.
Maio/2004: terreno no km 18 da Raposo Tavares pertencente à empresa de Private Equity Hicks, Muse, Tate & Furst.
Setembro/2005: terreno particular em Taboão da Serra.
Março/2007: terreno pertencente à Sociedade Itapecerica de Golf e Urbanismo, na divisa entre São Paulo e Itapecerica da Serra.
Agosto/2013: terreno em Paraisópolis de 10 mil m2. A ocupação recebeu o sugestivo nome de Faixa de Gaza.
Novembro/2013: terreno no Jardim Ângela de 1 milhão de m2, em uma área de proteção ambiental. A ocupação foi chamada de Nova Palestina. Ao lado da ocupação Faixa de Gaza, mostra bem as preferências políticas do movimento e de seu mentor.
Maio/2014: terreno em Itaquera, de propriedade da Viver Incorporadora, e a poucos quilômetros do estádio do Corinthians, que iria receber a abertura da Copa do Mundo. Recebeu o nome de Copa do Povo. Foi esta invasão que lançou nacionalmente o nome de Guilherme Boulos, e marcou o início de uma série de ações do grupo na época da Copa.
Junho/2014: terreno de 200 mil m2 no Portal do Morumbi, pertencente à construtora Even. A ocupação recebeu o nome de Portal do Povo, e teve reintegração de posse no mês seguinte.
Setembro/2014: terreno de 30 mil m2 ao lado do cemitério Gethsemani.
Setembro/2017: depois de passar os anos de 2015 e 2016 concentrando-se em defender Dilma e atacar Temer, Boulos volta ao seu core business, invadindo um terreno pertencente à empresa MZM em São Bernardo do Campo. Seria a última invasão antes de Boulos assumir o seu lado político, que analisaremos na seção 3 desse artigo.
Invasão de prédios públicos e privados
Fevereiro/2009: invasão da sede da prefeitura de Mauá para reivindicar um terreno invadido na cidade e cuja reintegração de posse já havia sido concedida pela justiça. Houve confronto com a polícia.
Setembro/2013: militantes do MTST invadem a sede da Finep, na marginal Pinheiros. Aproveitam para fechar a via também.
Outubro/2013: militantes do MTST tentam invadir a Câmera Legislativa de São Paulo. A ideia, segundo Boulos, é “cobrar” um posicionamento sobre o plano diretor da cidade. Estranha maneira de negociação.
Maio/2014: militantes do MTST invadem e picham três prédios de construtoras dos estádios da Copa. No mesmo momento, Boulos se reúne com Dilma Rousseff no estádio do Corinthians.
Maio/2014: cerca de mil militantes do MTST invadem a sede da Viver Incorporadora, na Vila Olímpia, que era a proprietária do terreno em Itaquera e que recebeu o nome de “Copa do Povo”. O pessoal do prédio gostou, pôde ir embora mais cedo para casa.
Junho/2014: militantes do MTST acampam em frente à Câmara Legislativa para pressionar por mudanças no Plano Diretor em favor da mudança de status dos terrenos invadidos.
Setembro/2015: militantes invadem e ocupam prédios do ministério da Fazenda em Brasília e em São Paulo para protestar contra a política econômica de Joaquim Levy.
Maio/2016: já depois de aprovado o impeachment, militantes do MTST acampam em uma praça próxima da residência de Michel Temer, em São Paulo.
Junho/2016: militantes do MTST invadem o prédio da presidência da República em São Paulo.
Fechamento de vias
Julho/2003: na ocupação do terreno da Volkswagen, os Sem-Teto desfilam pelas ruas de São Bernardo, paralisando o trânsito na cidade.
Abril/2007: o MTST fecha as rodovias Abrão Assed e SP-595 no interior de São Paulo.
Setembro/2012: fechamento da Régis Bittencourt por duas horas em uma terça-feira.
Interessante o testemunho de pessoas que queriam simplesmente chegar em casa e foram impedidos pela interrupção da via. “Também não tenho casa, mas trabalho para conseguir um dia”. Arrisco dizer que essa frase é a quintessência da rejeição a Guilherme Boulos até hoje.
Novembro/2009: membros do MTST ajudaram a obstruir a entrada de professores durante a eleição para a reitoria da USP. O que o MTST tem a ver com a eleição na USP é algo que Guilherme Boulos poderia esclarecer.
Outubro/2010: o MTST organiza um “dia das crianças” na frente da casa do dono da construtora proprietária de um terreno em Taboão da Serra, ocupado pelo movimento, impedindo-o de entrar em casa.
Dezembro/2012: um “protesto contra a violência” fechou a avenida Paulista no dia 10, em plena segunda feira. Boulos, claro, estava lá.
Maio/2014: em plena quinta-feira, militantes do MTST fecham a Radial Leste, a Marginal Pinheiros, a Marginal Tietê, a avenida Giovanni Gronchi e a Ponte do Socorro. Boulos disse temer o “uso político” das manifestações. É um fanfarrão.
Maio/2014: ainda na linha dos “eventos” em preparação para a Copa, a turma do Boulos interdita a Marginal Pinheiros em plena quinta-feira.
Junho/2014: a uma semana do início da Copa, os MTST interditam a Radial Leste. Era uma quarta-feira.
Julho/2014: o movimento paralisa as principais vias do centro da cidade em plena quarta-feira.
Agosto/2014: passeata com 3 mil integrantes do MTST fecha a Paulista em uma quarta-feira no final da tarde. O protesto era contra o Ministério Público, que começava a fechar o cerco ao movimento.
Novembro/2014: fechamento da av. Francisco Morato em uma quinta-feira acaba em tumulto.
Março/2015: o MTST organiza o fechamento de 23 rodovias e vias importantes em 7 Estados. Aqui, já temos o início do uso do movimento social em pautas mais políticas e menos ligadas à questão da moradia urbana. Como diz Boulos, trata-se de uma respostas às manifestações pelo impeachment de Dilma. Exploraremos esta metamorfose na próxima seção do artigo.
Seção 2: o MTST usado como braço político por Guilherme Boulos
Obviamente, Guilherme Boulos é de esquerda. De extrema-esquerda, para falar a verdade (voltaremos a esta questão de nomenclatura na próxima seção). Mas a sua militância no MTST sempre teve como objetivo, com meios tortos, melhorar as condições de moradia para os mais pobres.
No entanto, na medida em que foi crescendo e ganhando notoriedade, Boulos deve ter percebido a imensa arma que tinha em mãos: um verdadeiro exército de militantes doutrinados e obedientes, que executavam o que ele ordenasse. Isso tinha um valor político. E Boulos, inteligente e formado como é, deve ter percebido isso ao longo do tempo.
Antes de continuarmos, será conveniente resgatar uma breve entrevista de Guilherme Boulos em julho/2014, quando seu nome ganhou projeção nacional na esteira da ocupação Copa do Povo. Leia e voltamos depois.
A resposta à pergunta número 4 é o cerne do pensamento de Boulos. O MTST não é um movimento por moradia. O MTST é um instrumento de acumulação de forças para uma “mudança social”. Ele não usa a palavra “revolução”, mas é disso que se trata. É a práxis marxista em seu estado puro. Ele, Boulos, é a vanguarda do proletariado (no caso, dos sem-teto), e está lá para guiar o povo na derrubada das estruturas capitalistas.
Neste ponto, a resposta à pergunta 5 é coerente: não faz sentido ter um projeto político, ser candidato por dentro de um sistema podre. No máximo, poderia ser um elemento que usa as instituições democráticas para derrubá-las. É isso o que significa a resposta à pergunta 4. Por isso, nenhum dos então candidatos à presidência satisfaz aos seus objetivos. Destes, Dilma está no mesmo campo ideológico, mas muito aquém do que seria necessário para implantar um “governo do povo”.
Vale lembrar que Boulos, quando deu essa entrevista, já tinha 32 anos de idade. Não era um recém egresso de um grêmio estudantil, era suficientemente maduro para ter suas ideias bem decantadas. Difícil pensar seu ideário tenha mudado radicalmente nos últimos 10 anos.
Como dizíamos, Boulos começa a usar o MTST como braço político. O governo Dilma apoiou o MTST com a criação da modalidade Entidades dentro do programa Minha Casa Minha Vida, em que uma verba era separada para financiar a construção de unidades residenciais pelo movimento. Ou seja, o crime passou a compensar, porque quem participava das invasões tinha, uma vez o terreno sendo garantido, uma verba oficial para a construção dos apartamentos. Procurei mas não encontrei o número de imóveis entregues nessa modalidade, mas certamente não mexeram o ponteiro do déficit habitacional brasileiro. Mas serviram para catapultar Guilherme Boulos politicamente.
Em novembro de 2014, já como resposta às primeiras manifestações populares contra o governo Dilma após a sua reeleição, Boulos se junta à CUT para protestar “a favor” do governo.
No mês seguinte, sentindo a temperatura, a esquerda se articula para enfrentar o que seria um tsunami de protestos. O MTST de Boulos estava entre as 8 entidades que fariam parte do grupo “Povo Sem Medo” alguns meses depois.
Em agosto de 2015, o MTST de Boulos destacou-se na organização de um protesto contra a ideia de impeachment, que já estava fervendo.
Em outubro de 2015, finalmente foi parida a frente de movimentos sociais chamada de Povo Sem Medo, dentre as quais se incluia o MTST. Segundo a reportagem, o grupo de Boulos se destacava pela sua “capacidade de mobilização popular”. Ou seja, Boulos tinha na sua mão uma massa de manobra valiosa.
Em dezembro de 2015, o primeiro ato oficial da Frente Povo Sem Medo.
Em março de 2016, o MTST de Boulos agrega 7 mil manifestantes em ato em Brasília.
Em maio de 2016, já depois de aprovado o impeachment, Boulos muda o foco para a crítica ao novo presidente, com ameaças de “botar fogo no país”.
Em julho, outro ato pró-Dilma, desta vez no Largo da Batata.
Em agosto, em Copacabana.
E os militantes do MTST foram convocados até para protestar contra a não participação de Luiza Erundina (PSOL) em um debate durante a campanha para a prefeitura de São Paulo!
Em setembro, mais um protesto contra o governo com a participação de Boulos.
E em novembro de 2016, mais uma manifestação.
Em abril de 2017, o MTST junta-se aos sindicatos para promover uma grande greve contra o governo Temer. Enquanto os sindicalistas promoviam piquetes, os militantes de Boulos fechavam avenidas para, como diz o coordenador do MTST, “dificultar o transporte”. A ação incluiu queima de ônibus.
Por fim, em maio, o último ato de protesto, já com baixa adesão.
A avaliação de Boulos não poderia ser mais franca:
Era chegada a hora de encerrar este ciclo e iniciar outro: o do Guilherme Boulos político.
Seção 3: Guilherme Boulos, o político
Na entrevista que vimos acima, o então ativista Guilherme Boulos descartou qualquer projeto de se candidatar a cargo político. Era julho de 2014. Mas o seu sucesso foi muito mais do que ele poderia suportar. Com o enfraquecimento das mobilizações dos movimentos sociais, era chegada a hora de Boulos migrar dos braços do povo sem-teto para os braços do povo sem-político-de-esquerda-que-não-estivesse-envolvido-em-corrupção.
A jornalista Eliane Cantanhêde não se aguentou, e em junho de 2017 já incensava o enfant terrible alçado a alternativa de poder no campo da esquerda. Suas qualidades? Tem liderança, é inteligente, é interlocutor de Lula e acena para o futuro. E last but not least, “enche as ruas para endeusar ou infernizar quem e quando quer”, como se manipular massas violentas fosse uma qualidade desejável em uma democracia.
Em outubro de 2017, o PSOL já avaliava o nome de Boulos para concorrer no pleito do ano seguinte. Boulos permanecia em cima do muro, mas não existe mais a resistência de apenas três anos antes.
Em dezembro, o MTST completava 20 anos de fundação, com direito a um show que incluiu Caetano Veloso e outros expoentes da esquerda festiva, que pareciam ter encontrado alguém que poderia substituir Lula. Boulos já fala como candidato.
Em entrevista ainda em dezembro, Paula Lavigne, uma espécie de quintessência de sua classe, dá a letra: “Boulos é uma liderança desse momento urgente da política brasileira” e “certamente dará muita qualidade ao debate político”.
A senha para a sua filiação ao PSOL e candidatura presidencial foi o julgamento de Lula em segunda instância, em janeiro de 2018. Segundo reportagem da época, sua fidelidade ao ex-presidente o impedia de assumir a candidatura. Agora, a pista estava livre.
Em março de 2018, Guilherme Boulos sai do MTST e se filia ao PSOL para candidatar-se à Presidência. Recebeu incríveis 617.122 votos, ou 0,58% do total dos votos válidos, ficando à frente apenas de Vera Lúcia, Eymael e João Goulart. Cabo Daciolo teve mais do que o dobro de votos. Foi a pior performance do PSOL em eleições presidenciais, dado que Heloísa Helena (6,85% em 2006), Plínio Sampaio (0,87% em 2010) e Luciana Genro (1,55% em 2014) obtiveram votações maiores. (O PSOL não participou das eleições de 2022 em um acordo pelo apoio de Lula a Boulos nas eleições de 2024).
Já por aí se vê que, talvez, o potencial político de Boulos seja mais limitado do que a intelectualidade e o colunismo político querem nos fazer crer. É o que discutiremos na conclusão desse artigo.
Conclusão: quem é Boulos e até onde ele pode ir
Há muito a esquerda se pergunta quem herdará o latifúndio político de Lula. Vários nomes já flertaram com essa posição, mas arrisco dizer que nenhum mexeu mais com a imaginação da esquerda urbana tupiniquim do que Guilherme Boulos. Ao contrário de Fernando Haddad, Boulos teve a sua origem política nos movimentos sociais, o que lhe permite aliar uma sólida formação marxista com a praxis da luta social. Seria uma espécie de Lula com estudo, uma combinação muito poderosa.
Mas a comparação com Lula não resiste a meio minuto de reflexão. Em primeiro lugar, Lula se fez no movimento sindical. Apesar de criminalizado pelo regime militar, fazer greve não é crime, ao contrário de invadir propriedades privadas. Lula usava o expediente da greve contra as empresas para negociar melhores salários, uma prática absolutamente legítima, dentro de certos parâmetros. Boulos, por outro lado, usava pobres coitados para ocupar terrenos e forçar uma negociação tendo o terreno como refém. Com isso, furava a fila da habitação, deixando para trás os milhares que não pertenciam ao “movimento social”, em benefício de quem invadiu e em seu próprio, ao se projetar como um “defensor dos pobres”.
Além disso, Lula fundou o PT em 1980, deixando a vida de agitador sindical para dedicar-se à política. Foi ser eleito pela primeira vez apenas em 2002, ou seja, 22 anos depois. Boulos migrou para a “vida de político” somente em 2018, há meros 6 anos. A lembrança de sua vida de agitador ainda está muito fresca na memória da população. E trata-se da memória de um invasor de terrenos e um queimador de pneus em grandes avenidas, o que é muito pior do que ser um líder grevista.
Em setembro de 2017, a jornalista Vera Magalhães classifica Boulos como o que ele é, extrema-esquerda.
Foi uma exceção. Não há pejo em classificar Bolsonaro como extrema-direita em função de seus posicionamentos em relação à ditadura militar, mas a Guilherme Boulos é reservado um espaço dentre os moderados da política, apesar do seu passado. Algo incompreensível.
Gabriel Boric, presidente do Chile, é um político considerado mais à esquerda do que Michelle Bachelet, e vários o classificam como extrema-esquerda. No entanto, suas críticas ao regime bolivariano da Venezuela o coloca firmemente no campo democrático, apesar de suas ideias equivocadas no campo econômico. Boulos, assim como Lula, pelo contrário, é ambíguo quando se trata de defender instituições democráticas. Pelo seu histórico, Boulos demonstrou ter uma compreensão particular do que vem a ser democracia, que tem no respeito à propriedade privada um de seus pilares.
Ótimo … mas melhor seria com os links das matérias oficiais. Não é possível entender a fonte de cada texto e referência. Tive q procurar um a um e não achei …