A conversa derradeira sobre Suécia e pandemia

Por incrível que pareça, falar sobre Suécia suscita discussões apaixonadas. Difícil prever uma situação dessas antes de 2020. Como meu último artigo foi mal interpretado por algumas pessoas, farei um derradeiro esforço para transmitir minha opinião, com alguns números que a suportam, mas antes gostaria de enfatizar importantes esclarecimentos.

A Suécia em nenhum momento negligenciou o combate à pandemia. Na concepção binária de mundo, tem-se a impressão de que o país nórdico deixou o vírus rolar à vontade e isso nunca foi verdade. Ocorre que os suecos não adotaram as medidas mais restritivas ocorridas em outros países da Europa, mantiveram as escolas e comércio abertos, restringiram aglomerações abaixo de um determinado número, que variava conforme a severidade do momento, e nunca tolheram o direito de ir e vir. O governo, seguindo determinação das autoridades de saúde, fez as recomendações de distanciamento social, sugerindo um comportamento cauteloso à população, que usualmente já não é muito afeita à proximidade. Não houve brigas, disputas políticas e a vida seguiu mais próxima da normalidade que em outros lugares.

Claro que houve erros na condução do processo, particularmente no tratamento mais relaxado aos asilos de idosos (para o qual houve um ‘mea culpa’ a posteriori) e muitos sustentam que a não obrigatoriedade do uso de máscara em locais fechados foi um grande detrator dos seus números. Na segunda onda, apesar de maiores restrições, em nenhum momento ocorreu o pandemônio que contaminou boa parte do mundo, tampouco o colapso do sistema, que era o que todos sempre buscaram evitar. O modelo sueco apostou no bom comportamento da população, sem restringir sua liberdade Em hipótese alguma devemos visualizá-lo como o oásis do ‘libera geral’.

Outra inferência equivocada que se faz nessas situações é imaginar que um elogio à postura sueca signifique a sugestão de que o Brasil deveria copiá-la. São países bastante distintos culturalmente e de proporções não comparáveis, a população da Suécia é menor que a da cidade de São Paulo, então é claro que a complexidade no trato de uma pandemia por aqui será muito maior, mas a boa interpretação de texto é rara por essas bandas. Então, vamos combinar, quando se elogia uma postura, aquilo é somente um elogio, sem maiores inferências. E nesse caso específico, considero uma virtude que o país tenha tido a coragem de remar contra a maré e desafiar um suposto conjunto de melhores práticas que nunca foi comprovado, mesmo que tenha sido consensado.

Há também os lunáticos, ou melhor dizendo, fanáticos, que imediatamente após a menção sobre a Suécia, começam a politizar o assunto e logo trazem o Bolsonaro para a conversa. Segundo essa tese, tecer elogios à estratégia sueca seria coisa de ‘bolsonarista’. Barbaridade, a discussão passa longe de política. Aliás, o governo sueco é de ‘centro-esquerda’ e seria taxado de comunista pelos seguidores mais fiéis do Jair. Com esses tipos de argumento, nem é possível dialogar.

Prospera também nos bolsões ‘anti suecos’ a tese de que o país só pode ser comparado aos seus vizinhos nórdicos, e como ele foi pior entre os ‘vikings’, é sinal de que fizeram tudo errado. Oi? Sob essa tese, o Brasil, por exemplo, seria incomparável, já que suas características não são similares a de nenhum país do mundo. Mas que história é essa de que não se pode comparar? Desde quando? Eis outra maluquice. Qualquer comparação é válida, desde que o leitor entenda o que se está comparando. A Suécia, até que se prove o contrário, encontra-se no continente europeu e faz parte do mundo, então é óbvio que podemos compará-la aos demais. Se essa moda pega, mesmo dentro do Brasil não vamos poder comparar mais nada, dada a nossa heterogeneidade de cultura, de infra-estrutura, etc. Também é importante dizer que mesmo os outros nórdicos não adotaram ‘lockdowns’ tão estritos quanto a média geral europeia.

Observando os números acumulados de óbitos por covid desde o início da pandemia, a partir dos gráficos do ‘Our World in Data’, notamos que a Suécia tem um desempenho melhor que todos os grandes países europeus, com exceção da Alemanha, e está melhor que a média da Europa e da União Europeia. Pior que os vizinhos nórdicos, mas sob nenhum aspecto faz feio dentro do continente. Se isolarmos países com população semelhante, entre 8 e 20 milhões de habitantes (a Suécia tem 10 milhões), ela fica na #4 melhor posição entre dez, quase em empate técnico com a Grécia. Para quem foi colocada na cruz por conta de sua ‘rebeldia’, não está mal. Por outro lado, quando visto o excedente de óbitos, que é a mensuração mais correta, ela passa a ser a melhor desse grupo.

No último artigo eu publiquei um gráfico que comparava o excedente de óbitos entre os nórdicos, mas a sua leitura não estava tão fácil. Visualmente ele sugeria que poderia haver um empate técnico entre Suécia, Dinamarca e Finlândia, mas o autor não me respondeu sobre metodologia adotada, e ao observar a comparação no ‘Our world in data’, é perceptível que a Suécia (com uma média de +5% de excedentes) ainda está acima dos vizinhos, que praticamente não tiveram excedente. Na ausência da explicação, confio nos números do ‘Our World in Data’. Isso obviamente não muda a conclusão, notem que as leituras são favoráveis e a colocam no grupo dos países com melhor desempenho no continente.

Enquanto muitos brigam para provar que a estratégia sueca não presta, os próprios suecos não estão muito preocupados com o que o mundo pensa a respeito deles, seguem tranquilos e satisfeitos com a maneira pela qual enfrentaram essa pandemia. Eu posso apostar que terão menos problemas psicológicos e psiquiátricos para tratar ao longo dos próximos anos, exercitaram seu livre arbítrio sem brigas políticas, sem ‘faniquitos’ ou pânico extremado. E para os que perguntam como anda a vacinação por lá, 82% da população adulta plenamente imunizada, com ao menos duas doses.

Do ponto de vista sanitário, se por um lado a Suécia está longe de brilhar, por outro, sob qualquer aspecto ela não faz feio no ranking geral. E para quem foi condenada no início da pandemia por subverter o ‘protocolo’ padrão, é um bom desempenho. Em um mundo onde o comportamento de manada tem sido adotado quase automaticamente, entendo que um ‘outlier’ é extremamente importante para resgatarmos o pensamento crítico. O conhecimento sobre esse vírus maldito ainda é insuficiente para termos tantas certezas e no final das contas, sem levar sua população ao estado de estresse que vimos em outros sítios, inclusive por essas bandas tropicais, a Suécia atingiu resultados bastante satisfatórios, melhores que a média europeia e muito melhor do que qualquer país das Américas.

Como ninguém pode ter questionado o fechamento das escolas por mais de um ano? Como pudemos deixar as crianças mais pobres sem acesso às aulas por tanto tempo? Por que sacrificamos sem nenhuma piedade milhares de pequenos negócios capazes de manter seu funcionamento cumprindo protocolos de segurança, sem gerar aglomeração? Por aqui, fizemos tudo isso, mas deixamos as fronteiras abertas, fomos permissivos em relação a aglomerações clandestinas e tratamos tudo de maneira igual, como um bloco monolítico. Decisões ‘horizontais’, onde uma regra se aplica para todos, sem exceção, podem ser mais fáceis de serem executadas, mas são muito menos eficientes.

São assuntos que podem compor uma biblioteca e não me atreveria a dar respostas definitivas, até porque o tema está exaurindo minha paciência, mas eu realmente me incomodo com os consensos construídos em cima de premissas frágeis. Por isso torci para que o experimento sueco se provasse minimamente viável. E para mim, está provado. E isso somente quer dizer que não existe uma fórmula única e incontestável de se combater uma pandemia. Mas, infelizmente, se houver outra, não tenho certeza de que todos os aprendizados terão sido assimilados.

Espero, sinceramente, que eu tenha sido claro o mais claro possível nesse artigo, pois não retomarei o mesmo assunto novamente. E faço votos de que o tempo se encarregue de trazer as muitas respostas que não temos.

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