As três lições do tio Gugu, o doce comunista

Uma das melhores figuras que Deus colocou em meu caminho nesta vida foi o tio Gugu.

Seu nome era Juvenal Jacinto de Souza, jornalista e tradutor. Hoje, mais de trinta anos depois de sua morte, dá nome a uma praça no bairro da Serraria, em Porto Alegre, onde morou durante quase a vida toda. Nossos caminhos se cruzaram quando ele casou com minha tia Edith, a Deth, irmã do meu pai. Tio Gugul foi descrito por um amigo famoso, Érico Veríssimo, como um “homem tão tímido que parecia pedir desculpas por estar vivo”. Só que o autor de “O Tempo e o Vento” complementava; “mas não se enganem diante de tanta mansidão. É homem de convicções firmes, de uma só palavra”. Tanto que acabou passando um ano na cadeia, preso pela ditadura de Getúlio Vargas, episódio sobre o qual ele pouco falava.

Gugu e Deth eram comunistas-raiz; desprezavam bens materiais, viviam em um bairro simples, numa casa modesta, com um quintal de arvores frutíferas. Eu adorava passar uns dias com eles, a conversa era sempre muito boa. Mesmo sendo de poucas palavras, Gugu tinha um senso de humor admirável. Afastado do mercado jornalístico pela ditadura militar, ganhava a vida traduzindo livros e revistas. Vale dizer, em defesa de suas convicções, que na época o comunismo ainda estava no prazo de validade; a revolução cubana era recente, a União Soviética parecia sólida, enfim, não havia ainda indícios claros do desastre que viria depois.

Devo a ele pelo menos três coisas que levei para o resto da vida.

A primeira foi um curso gratuito de datilografia (para quem não conhece, favor ir no Google e procurar por “máquina de escrever”). Gugu foi um mestre dedicado e paciente.

A segunda foi um trocadilho em italiano; “traduttore, traditore”, tradutores são traidores. Falava isto ao comentar a dureza de sua profissão; existem palavras e expressões que não têm equivalentes em outros idiomas, portanto todo o tradutor tem que fazer algum tipo de adaptação no texto. Isto configurava a “traição” inevitável. Até hoje uso isto em aula, quando lembro, por exemplo, que a tradução correta de “Project” não é “Projeto” e outras assim. Onde quer que esteja, tenho certeza que Gugu deve dar boas risadas quando vê as besteiras do “Google Translator”, por exemplo.

Mas a terceira e, certamente, a mais importante, foi no início de 1969. O AI-5 era recente, e os ânimos estavam exaltados. Eu, com meus 17 anos, desprezava tudo o que fosse “reacionário”, ou seja, a favor dos militares. E meu alvo preferencial era o escritor e jornalista Nelson Rodrigues, que assinava colunas diárias apoiando a ditadura. Obviamente, Gugu tinha muito mais razões que eu para odiar os militares e seus apoiadores. E foi isto que tornou este diálogo inesquecível.

Ele chegou com o jornal na mão e me perguntou, em gauchês perfeito;

– Tu leste a coluna do Nélson Rodrigues hoje?

O gênio adolescente aqui, conhecedor profundo de todas as verdades da vida, respondeu com a arrogância peculiar;

– Não perco meu tempo com este reacionário imbecil.

A resposta veio rápida, num tom que, para um sujeito como ele, era quase agressivo;

– Pois não sabes o que estás perdendo…

E isto foi só o começo. Durante cerca de dez minutos Gugu falou sem parar (seguramente um recorde para ele) sobre a importância de ouvir as boas ideias, independente do viés político, sobre como Nélson era brilhante e tinha que ser respeitado e admirado, e mais um monte de coisas.

Quando finalmente ele voltou à sua calma e mudez habitual, o sobrinho imbecil aqui havia entendido uma grande lição; não existe dono da verdade. Ouvir o outro lado é sempre importante. Porque existem pessoas tão boas ou melhores que você que acreditam em coisas diferentes, seja o assunto política, religião, futebol ou qualquer outro. E você vai aprender com elas, sempre.

Onde quer que esteja, tenho certeza que Gugu deve estar muito triste com os rumos que o Brasil tomou, com os erros da esquerda em que ele tanto acreditava e, principalmente, com a pobreza aviltante do nosso debate político atual. Pelo menos uma alegria posso dar a ele; o sobrinho aqui ouviu e aprendeu. De lá para cá sempre gostei de debater e me posicionar em todo o tipo de assunto, antes e depois da internet, e me orgulho de dizer que jamais ofendi ou deixei de ouvir alguém.Muito por força da bendita lição do meu tio que era comunista e ateu, mas tinha uma postura cristã como poucas vezes eu vi ; amava e respeitava o próximo, independente de suas visões particulares.

Gugu, meu doce tio comunista. Que falta você faz!

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