A qualidade das elites brasileiras

Existe consenso no mainstream do pensamento econômico de que a qualidade das instituições determina a probabilidade de sucesso de um país. Por instituições, entendemos coisas como as leis e o enforcement das leis, a estabilidade do sistema político, a qualidade e independência das agências governamentais e a facilidade para se empreender, por exemplo.

Muitas vezes nos perguntamos por que certas coisas são de um jeito e não do outro, porque não podemos funcionar como os países mais desenvolvidos funcionam. E não vale dizer que os países ricos funcionam melhor porque são ricos. É o justo oposto: porque as coisas funcionam bem é que esses países são ricos. EUA e Brasil tinham nível de riqueza semelhante há três séculos. O que aconteceu lá que não aconteceu aqui? Boas instituições.

Mas as instituições não foram outorgadas por Deus no início dos tempos a cada país, de modo que uns tiveram sorte de contar com boas instituições e outros, nem tanto. Não. As instituições são construções humanas. Mais especificamente, são construções das elites de cada país. Diz o velho ditado que jabuti não sobe em árvore, se está lá é porque alguém colocou. O jabuti das instituições, boas ou ruins, foi colocado pelas elites de cada país.

Pedro Fernando Nery, em um artigo de 08/12 no Estadão (Piores elites do mundo, leia aqui), cita um trabalho em que os autores, Tomas Casas e Guido Cozzi, da Universidade St. Gallen, na Suíça, criaram um índice de qualidade das elites, inspirados nas ideias dos economistas Acemoglu e Robinson, autores do best-seller Por que as Nações Falham. O Brasil aparece em 27º lugar em um conjunto de 32 países. Fui atrás do trabalho, que pode ser consultado aqui.

Trata-se de uma abordagem bastante interessante, que parte de três pressupostos:

O que são elites?

Para começo de conversa, é preciso definir o que se entende por elite. Segundo os autores do índice,

“Elites são grupos estreitos e coordenados, que contam com modelos de negócios que conseguem acumular riqueza com sucesso”.

Modelos de negócios, neste contexto, não são necessariamente empresas. É qualquer mecanismo de acumulação de riqueza. Não se está entrando no mérito de se se trata de elites econômicas, políticas ou culturais. Qualquer um que acumula riqueza (em relação à média da riqueza da população do país), faz parte da elite. Tomando dados do IBGE (Pnad contínua – 2019), uma pessoa que recebe mais do que R$ 3.500 por mês está entre as 15% que mais tem renda no país, e faz parte do grupo que acumula 50% da renda do país.

Claro, ninguém que receba R$ 3.500 por mês se considera elite. No entanto, as estruturas estão, de alguma maneira, montadas para concentrar a renda do país dessa maneira. Se R$ 3.500 não parece muito, lembre-se de que a parcela dos 80% mais pobres da população vive com uma renda mensal média de R$ 850. Sim, o Brasil é um país pobre.

Uma outra forma de ver a questão é focar na demonização que as esquerdas costumam fazer das elites empresariais, as quais, em conluio com políticos inescrupulosos, seriam responsáveis por criar regras para proteger os seus interesses. Esta é a imagem de “elite” que a maioria tem em mente quando ouve esta palavra. No entanto, elite é muito mais do que isso. Lembro, a propósito, de um artigo de Samuel Pessoa, em que o economista descreve perfeitamente uma das muitas vertentes da elite brasileira. Pessoa toma como exemplo a personagem principal do filme Aquarius, que virou ícone da luta contra o “golpe” do impeachment, quando seu elenco apareceu empunhando cartazes “anti-golpe” no Festival de Cannes.

Clara, a personagem encenada por Sônia Braga, é o símbolo da resistência contra a especulação imobiliária, quando se recusa a vender seu apartamento para uma incorporadora. Pergunto: tem mais simbolismo anti-elite do que isso? Pois bem. Pessoa descreve Clara: aposentada pelo teto do INSS, acumula a pensão do falecido marido, ex-professor titular de uma universidade federal. Ele comenta: é exclusividade brasileira poder acumular a própria pensão com a do marido. Clara possui 4 outros apartamentos, provavelmente adquiridos com financiamento do antigo BNH. A hiperinflação comeu o saldo devedor, e estes apartamentos provavelmente custaram a Clara muito menos que à sociedade brasileira, pois políticos demagogos cancelaram a correção da dívida. Com sua “luta contra a especulação das elites”, Clara impede a geração de empregos na construção, aumento de renda para a incorporadora, aumento de patrimônio para os outros moradores do prédio, aumento de IPTU para a prefeitura. Quer dizer, a esquerda e seu discurso anti-elite convive e fomenta distorções que também concentram renda. E muito.

Os autores descrevem as elites que criam valor como aquelas que aumentam o bolo, enquanto as elites que extraem valor são aquelas que aumentam a sua fatia no bolo. Essa definição faz lembrar a luta pela distribuição de uma renda que não existe. Na verdade, trata-se da luta entre diferentes elites em busca de aumentar a sua fatia do bolo.

Vejamos, a seguir, como o índice mede a capacidade que as elites têm de criar ou extrair valor da sociedade.

Metodologia

Como identificar elites que criam valor para a sociedade e elites que extraem valor da sociedade? Os autores do estudo dividem essa capacidade em dois sub-índices: Valor e Poder.

O sub-índice Valor mede a capacidade das elites de criarem valor para a sociedade, por um lado, ou de extraírem valor da sociedade, por outro. Já o sub-índice Poder mede o potencial de extração de valor. Quanto mais poder as elites possuem, mais valor podem extrair da sociedade. Portanto, quanto mais poder as elites têm, menor a sua qualidade. Esse conceito é interessante, porque parte do pressuposto de que, tendo poder, as elites irão necessariamente extrair valor da sociedade. Isso, em geral, é verdade. Uma notável exceção é Cingapura, primeiro lugar no ranking, em que a elite tem muito poder, mas usa, digamos, “para o bem”, ou seja, para criar valor para a sociedade. Veremos isso mais adiante.

Cada um desses dois sub-índices é medido em duas dimensões: a dimensão política e a dimensão econômica. As esferas política e econômica são o palco onde as elites exercem o seu poder de criar ou de extrair valor para e da sociedade.

O quadro a seguir resume a relação entre os dois sub-índices e as duas esferas, e os itens medidos em cada combinação, chamados pelos autores de Pilares, com seus respectivos pesos no índice:

Vejamos a seguir o que significa cada um desses 12 pilares (entre parênteses, a nomenclatura em inglês). Estes 12 pilares são medidos através de 72 indicadores dos mais diversos. Para mais detalhes sobre como estes indicadores são usados, recomento verificar o trabalho diretamente aqui.

Poder Político

Poder Econômico

Valor Político: reflete as decisões que canalizam ou desviam recursos da inovação e dos setores que criam valor.

Valor econômico: mede diretamente o Valor Criado (ou Extraído) dos 3 mercados da economia.

Análise dos Resultados

O ranking final pode ser visto na tabela a seguir:

O ranking é dado pela coluna EQx. Além disso, podemos observar o ranking pelos sub-índices Poder e Valor. No caso do ranking de Poder, quanto maior o score, menor é o poder que as elites têm de extrair valor. E, no caso do ranking de Valor, quanto maior o score, maior é o Valor criado pelas elites para a sociedade.

Vimos anteriormente que, no critério dos autores, o score de Valor vale 2/3 da pontuação final, enquanto o score de Poder vale 1/3. A lógica dessa ponderação é de que, no final do dia, o que importa é o Valor criado. O Poder serve para potencializar o Valor extraído. Assim, mesmo que as elites concentrem muito Poder, se não usarem esse Poder para extrair Valor da sociedade, está valendo.

Para fazer uma análise mais sistemática dos resultados, vamos usar o gráfico a seguir, que relaciona Valor com Poder:

Os autores dividem os países em quatro grupos, a depender de sua colocação nesse gráfico (os quadrantes são divididos pelas medianas das séries, de modo que temos metade dos pontos acima e metade abaixo, metade à esquerda e metade à direita):

Observe que, de maneira geral, os países encontram-se nos quadrantes verde (Elites Competitivas) ou vermelho (Elites Rentistas). Alguns encontram-se na fronteira, constituindo-se em casos interessantes.

Por exemplo, as elites em Cingapura e África do Sul detém praticamente o mesmo Poder de extração de valor. No entanto, o modelo de negócios em Cingapura cria muito mais Valor do que na África do Sul. As elites em Cingapura detêm muito mais Poder de extração do que outros países com modelos de alta criação de Valor. Seria um exemplo de Elite Ilustrada, que não usa o seu Poder para extrair Valor da sociedade, pelo contrário. Já as elites da África do Sul detêm muito menos Poder de extração do que outros países com modelos de baixa criação de Valor. Ou seja, apesar de não ter elites com alto Poder de extração, o país não consegue criar modelos de criação de Valor. Seria um exemplo de Elites em Luta, grupos em busca de uma posição de dominância para perpetuarem o modelo de negócio de baixa criação de Valor.

Como estão as elites brasileiras?

As elites do Brasil, assim como de vários outros países pobres, encontram-se no quadrante vermelho. Ou seja, são elites rentistas, que usam o seu Poder para extrair Valor da sociedade. Mas mesmo dentro desse quadrante vermelho, há diferenças significativas entre os países. As elites de Botswana, por exemplo, com um modelo de negócios que cria mais Valor, estariam mais próximas de serem elites ilustradas do que o Brasil, cujas elites estariam mais próximas do modelo sul-africano, de Elites em Luta.

Vamos detalhar um pouco mais onde estão os problemas brasileiros, em comparação com seus pares. Para isso, vamos explorar os detalhes do índice, isto é, os seus pilares, e verificar como as elites brasileiras se saíram em cada um deles.

Nesta tabela, mostramos a nota do Brasil em cada um dos pilares, a média de todos os países também em cada um dos pilares e o z-score, ou seja, quão distante está o Brasil da média, considerando o desvio-padrão dos resultados de todos os países em cada um dos pilares e nos sub-índices.

Podemos observar que o país se sai mal principalmente no sub-índice Valor, que tem peso maior na ponderação (2/3). Os pilares que mais nos puxam para baixo (considerando o z-score) são o Mercado de Trabalho, Produtos e Serviços e Renda Extraída. Vamos lembrar quais são os índices que compõem cada um desses pilares.

No caso do pilar Mercado de Trabalho, temos, por exemplo, o índice de desemprego, a diferença entre o salário real e a produtividade da mão de obra (basta lembrar do nível do salário-mínimo vis a vis o nível de preparo médio do trabalhador brasileiro) e o desemprego dos mais jovens.

No pilar Produtos e Serviços, temos, por exemplo, abertura comercial (o país é um dos mais fechados do mundo) e barreiras à entrada de novas firmas.

Por fim, no pilar de Renda Extraída, temos taxa de homicídio (uma das mais altas do mundo), descentralização fiscal e carga tributária (a mais alta do mundo emergente).

Pode ser difícil relacionar cada um desses índices com a extração de valor por parte das elites. São consequências tão indiretas, que não ligamos uma coisa com a outra. Mas, segundo os autores do estudo, tudo tem a ver com a forma como o poder político e econômico é organizado em cada país. Consideremos, por exemplo, o índice de homicídios, que puxa para baixo o pilar Renda Extraída. Lembremos que, neste pilar, medimos como o governo extrai renda da sociedade.

Mas, afinal, o que tem o índice de homicídios a ver com a extração de renda? O vergonhoso índice de homicídios brasileiro é explicado de maneira diferente pela esquerda e pela direita. Pela esquerda, trata-se do resultado da má distribuição de renda, que leva à violência. Pela direita, é o resultado de instituições fracas, que não investigam, não julgam e não prendem de maneira eficiente. Tanto faz. Uma ou outra explicação levam à mesma conclusão: o homicídio representa a extração máxima de valor da sociedade, uma vida humana produtiva, resultado da ineficiência das elites. Este é o sentido.

Qual a solução? Existe solução?

Observemos novamente o gráfico de relação Valor vs. Poder.

O objetivo dos países é subir na escala da criação de Valor. Segundo a lógica do ranking, grande parte dos países alcançou sucesso porque suas elites são fracas, não conseguem extrair valor da sociedade (quadrante verde). Mas as elites brasileiras são menos extrativas que vários de seus pares, segundo os índices usados no estudo. Portanto, poderíamos ter modelos de negócios que criam mais valor para a sociedade. Botswana, Indonésia e Casaquistão, para citar 3 países com elites até mais extrativas do que a brasileira, contam com modelos de negócios que proporcionam maior criação de valor.

De qualquer forma, apesar de ser possível, o que nos mostra o modelo é que é mais difícil estabelecer modelos de criação de valor com elites mais extrativistas. Ou, inversamente, elites menos extrativistas levam quase que naturalmente a modelos de negócios que agregam mais valor para a sociedade (a África do Sul parece ser a única exceção a essa regra). Óbvio que estou aqui supondo uma relação de causa-efeito, da natureza do poder político para a criação de valor, e não vice-versa. Além disso, estamos analisando uma foto e não o filme. Não sabemos como essas características evoluíram no tempo. Mas essa relação de causa-efeito parece ser a mais intuitiva.

São muito úteis índices como o Doing Business, do Banco Mundial, que nos aponta caminhos para aumentar a produtividade da economia. No entanto, estas estruturas burocráticas não estão aí por acaso. Elas servem elites rentistas, que lucram e mantém suas posições ao extrair Valor da sociedade através dessas mesmas estruturas. Portanto, e é isso o que nos diz a Economia Política, a maneira de montar modelos de negócios que criam Valor para a sociedade é diminuir o Poder das elites de extrair Valor da sociedade.

A pergunta do milhão é: como diminuir o Poder das elites?

Minha crítica ao índice

A ideia de um índice de poder das elites é muito boa. Permite-nos uma outra visão sobre o problema de criação de valor nas sociedades, mudando o foco da operacionalização dessa construção de valor para um conceito de economia política que foca a gênese das estruturas que extraem valor da sociedade. Como mencionei no início, tira o foco do jabuti em si para a mão que colocou o jabuti na árvore.

Mas o índice, per se, não endereça soluções para o problema. Vou fazer um paralelo com o índice Doing Business. O Doing Business é um índice formado por vários quesitos que atrapalham a vida do empreendedor. O foco é na desburocratização. Portanto, para que um país melhore sua posição no ranking, basta endereçar diretamente os problemas apontados: número de dias necessários para abrir ou fechar uma empresa, enforcement de contratos, tempo para obter eletricidade etc. São critérios objetivos que, se melhorados, ajudam o empreendedor a criar valor.

O Ranking das Elites, por outro lado, é calculado usando-se como base medidas que não se relacionam diretamente com o Poder que essas elites detêm. Funcionam como o termômetro que mede a febre, mas não nos dizem nada sobre a doença em si. Por exemplo, o pilar Regras do Estado, dentro do Poder Político, é medido por 7 índices. Um deles é o nível de corrupção no governo. Certo, a corrupção é um sinal de captura do Estado pelas elites. Mas o que leva à corrupção? Se não tivermos um diagnóstico objetivo das causas últimas da corrupção governamental, de nada servirá ranquearmos os países dos mais aos menos corruptos. Claro, sempre se pode combater a corrupção e tentar melhorar a posição no ranking. Mas, como vimos no episódio da Lava-Jato, qualquer tentativa de combater a corrupção sem mudar as estruturas sobre as quais as elites exercem o seu poder é como enxugar gelo. Mudarão os personagens, mas a corrupção permanecerá como regra para se fazer negócios.

E é este diagnóstico, em minha opinião, que falta a este índice. Óbvio que não é fácil (e talvez não seja sequer possível), construir um índice de determinantes do Poder político das elites, e não somente um índice que mede as consequências desse poder político. Mas, se não for feito, o que obtemos (como é o caso) é mais um índice que tem alta correlação com renda per/capita, IDH, competitividade e outros índices de riqueza e produtividade.

Como afirmei acima, este índice de qualidade das elites é útil por mostrar a mesma realidade de outro ângulo, e chamar a atenção para as causas últimas (causas políticas) da pobreza dos países. Mas precisa caminhar muito para servir como instrumento de mudanças.

Sair da versão mobile