Lágrimas secas e o ciclo da saudade eterna

Ele acordou em um quarto claro, com paredes em tons pastel. Não sentia mais o mal-estar que lhe acometera antes de ser sedado, o que era um alívio. Após alguns instantes, entrou um enfermeiro até então desconhecido, perguntando se estava tudo bem. Ao seu redor, percebeu uma mesa com uma garrafa de água. Estranhava a ausência de tubos e outros apetrechos típicos de hospital. Ainda com o enfermeiro por perto, perguntou: ‘Esse quarto é novo? Onde está a minha mulher’? O sujeito respondeu educadamente: ‘Sim, é um quarto novo. Logo você terá outras informações. Agora descanse um pouco.’ E saiu.

Percebeu que o cômodo não possuía aparelho de TV. Tudo parecia  um pouco estranho, afinal, não estava na UTI e todos os quartos de hospital até onde ele sabia, tinham ao menos uma TV. Aquele, apesar de aconchegante, era muito simples. Também não era uma sala preparada para a sessão de hemodiálise, para a qual ele estava sendo encaminhado antes de adormecer. Como sentia-se muito melhor, desconectou-se dessas dúvidas e seguiu o conselho do enfermeiro, fechou os olhos e descansou.

Despertou algum tempo depois, sem saber quanto havia dormido. Sentia-se um tanto angustiado. À sua frente viu seu sogro, com aparência mais jovem. Ao lado, seu pai. Na verdade; sonhava, julgou. ‘Pai!!!’, exclamou feliz. ‘Você está bem?’. ‘Estou ótimo, meu filho. Viemos te receber’. Percebeu um velho amigo, que havia partido há poucos anos, acenando sorridente da porta do quarto. ‘Como vai, Carlos! Que bom te ver novamente!’. Cercado de pessoas queridas, que haviam partido há algum tempo, pensou em voz alta: ‘ Que sonho bom! Como é bom vê-los!’. Nesse momento, seu sogro o segurou pela mão e lhe deu a notícia para a qual poucos se preparam em vida: ‘Carlos, você precisa agora ser forte. Isso não é um sonho. Você desencarnou há poucas horas.’ ‘Eu morri???!!!! Não pode ser!!! Está tudo tão igual!!!’

Nesse momento, uma mistura de tristeza e desespero tomou conta de sua alma. Como se estivesse em um filme, ele sentiu as emoções que emanavam de seus queridos familiares e amigos que haviam ficado na ‘matéria’. Um painel se abriu diante de si e ele foi apresentado aos seus últimos momentos na Terra: a sedação antes de ser levado à sessão de hemodiálise, as complicações cardíacas, a parada, a tentativa de reanimação, o desenlace final. Viu no quadro o desespero de seus familiares, que acompanharam a sua repentina epopéia de perto. Caiu a ficha. Havia ‘morrido’. As vibrações de consternação que a essa altura eram provenientes de vários lugares lhe comoviam profundamente e ampliavam seu desespero. Impotente com a situação, foi acometido de um choro intenso, irremediável, compulsivo, como jamais havia experimentado em vida. Foram longos minutos, talvez horas,  que pareceram séculos. Custava crer que sua vida havia se exaurido. Ele estava ali, com seus parentes e seu velho amigo. Era a mesma pessoa. Estava tudo igual. Mas ele sabia que a vida que ele experimentou por 65 anos não era mais a mesma. Havia partido e deixado tudo que mais amava para trás. A dor era imensa. Não conseguia parar de chorar e soluçar. Eis que seus amigos o cercaram, seguraram a sua mão e sua cabeça, e com a ajuda do enfermeiro que o havia atendido, fizeram uma oração. Ele gradualmente se acalmou e voltou a adormecer. ‘Ainda levará um tempo até conseguir manter a serenidade. Mas ele tem merecimento, e vai conseguir fazê-lo mais rápido do que o normal’, disse o enfermeiro aos demais.

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Aquele seria um sábado normal para mim, não fosse o fato de ser aniversário de um ano do meu filho mais novo e do meu pai estar ainda no hospital, para onde tinha ido tratar de uma desidratação no dia anterior. Havia me despedido dele na noite de sexta e tomado o avião de volta a São Paulo. Ainda pela manhã, tratando de temas da pequena festa que seria celebrada à tarde, recebo a notícia de que ele não melhorara, e que algumas complicações renais iriam obrigá-lo a ficar no hospital por mais dois dias. Os planos de ir à praia naquele final de semana haviam sido adiados. Talvez influenciado pelo ar preocupado de minha mãe ao telefone, fui tomado por emoções confusas e nostálgicas, e mesmo sem ter nenhuma evidência de que estávamos diante de um caso grave, chorei. Retomei a compostura, afinal, não havia até então nada que denotasse o que estaria por vir. Passei a monitorar a situação do estado do meu pai através de ligações rápidas ao meu irmão, médico, que me passava as coordenadas. Até o início da tarde, o quadro, apesar de preocupante, não era alarmante. Uma sessão de hemodiálise resolveria a situação e maiores cuidados com o rim deveriam ser tomados a partir de então. A festinha do meu filho fluía normalmente, mas eu seguia inquieto. Foi então que hora mais desesperadora de minha vida se apresentou diante de mim. Acompanhando a deterioração da situação, através do tom mais grave nas conversas com meu irmão, recebo a notícia de que meu pai havia sofrido uma parada cardíaca e que naquele momento, os médicos tentavam reanimá-lo. Pelo telefone, meu irmão me pedia para rezar muito, mas imagino que àquela altura, ele mesmo sabia que as chances eram ínfimas. Os dez minutos que se seguiram foram terrivelmente tensos e traumáticos e a ligação derradeira de meu irmão apenas confirmou o que eu, aos prantos, já sentia. Perdia o chão naquele momento, de maneira absolutamente avassaladora, repentina, inesperada. O que se seguiu foi uma tristeza profunda, um vazio impreenchível, a sensação do inacreditável diante de mim. De uma hora para outra, perdia o mentor de uma vida, amigo, conselheiro, e sobretudo pai, na concepção mais perfeita que essa palavra pode ter. A chegada ao aeroporto de Curitiba, que invariavelmente contava com seu abraço sempre caloroso, nunca mais seria a mesma. O desespero e tristeza que sentimos aqui seguramente foram idênticos ao que ele sentiu no outro plano. Não cabe descrever as horas e dias seguintes, pois o ‘luto’ não é sentimento descritível. Não é descrito, é sentido, sofrido, doído, íntimo.

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O tempo foi passando e a adaptação ao outro plano seguia conforme esperado. A saudade era infindável, aguçada ainda mais pelos pensamentos que os amigos e familiares emanavam da Terra. Compreendeu a razão de sua partida tão precoce para os dias atuais e aprendeu que a amplitude da vida era muito maior que uma mera existência terrena. O convívio com parentes e amigos de outrora, que já estavam por lá há tempos, aplacavam a dor da separação. Mesmo assim, havia momentos de pranto incessante, principalmente quando as mentes dos que ficaram se conectavam em vibrações de saudade e inconformismo. Também recebia o bálsamo das orações que eram direcionadas e ele, e isso era extremamente reconfortante. Vez por outra, visitava os seus. Em uma dessas ocasiões, esteve na casa de seu filho, em São Paulo, e observava seu neto primogênito, pelo qual tinha grande afeição, logo após o almoço. No apartamento, a correria típica de quem tem bebê em casa e seu neto mais novo, de pouco mais de um ano, ia para lá e para cá. Foi quando se aproximou dele e a partir dessas técnicas que somente os que não estão entre nós conhecem, o influenciou para que o pequeno se aproximasse do primogênito. Ele foi chegando, chegando e quando o mais velho menos esperava, o bebezinho agarrou suas bochechas, deu-lhe dois apertões carinhosos e saiu correndo, sorrindo. Nesse instante, o mais velho, em um misto de surpresa e alegria, comentou com a funcionária da casa: ‘Nossa, o Luca apertou minha bochecha do jeito que o vovô fazia!!!’.

Lágrimas de felicidade inundaram-lhe a alma e ele retornou à rotina de sua nova vida. Nunca deixava de visitar os seus entes queridos na Terra e muitas vezes era ‘percebido’, não sem muita saudade, misturada com a angústia de não poder dar vazão ao contato físico e visual, tal qual estamos acostumados. Aprendeu que as conexões dessa vida jamais se encerram e que muitas delas tem uma história milenar, que transcende muito as poucas décadas que passamos no orbe terrrestre. Sua eternidade e a realidade de que ela continua, sob outra forma, mas semelhante, lhe estimulavam a seguir em frente. Aos poucos, foi se acostumando com a sua nova ‘existência’, a verdadeira, interrompida por experiências na ‘matéria’. Passou a zelar pelos seus, o que lhe deixou muito feliz, e também a trabalhar no outro plano. Sua vida na Terra foi digna e honrada e acumulava merecimento. Sempre um trabalhador incansável, seguia na labuta. O chamado descanso eterno é efêmero. Em algum momento, no futuro, todos se reencontrarão novamente, e ele que em todas as ocasiões ficava exultante com a família reunida, irá nos receber de braços abertos e sorriso infinito.

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Há mais de um ano que eu me considero refém do que eu chamo de ciclo da saudade eterna. Nesse caso, não há resgate que nos desvencilhe desse emaranhado de sentimentos, que incluem a nostalgia, a alegria, a felicidade, a gratidão e cada vez menos, mas nem por isso ausente, o inconformismo. A constatação de que para ‘matar a saudade de alguns’, você terá que necessariamente iniciar um ciclo de saudade para com ‘outros’ é que nos torna refém dessa situação praticamente insolúvel. No caso, somente no longuíssimo prazo esse ciclo se desfaz, quando o reecontro de todos os ‘personagens’ dos atos da peça de sua vida acontece, em outro plano. Antes disso, faz-se necessário a adaptação às novas circunstâncias. A vida leva e traz alegrias e tristezas em um ritmo contínuo. Quando menos esperamos, uma tragédia cruza a nossa esquina, sucedida por uma alegria sem igual no próximo quarteirão do tempo. Não houve um dia sequer dos últimos 370 que não pensasse no meu pai. Refém que sou do ciclo da saudade eterna, os sentimentos se misturam conforme a definição: muitas vezes alegria, poucas vezes o inconformismo, sempre a gratidão, frequentemente a vontade de ter a sua presença por perto. A saudade faz parte do ciclo maior da vida e cedo ou tarde todos passamos por isso.

Meu pai  reencontrou o meu avô, de quem ele era tão próximo, e outros tantos amigos e parentes, mas para isso o destino obrigou-o a abdicar do convívio de seus filhos, netos e esposa. Ele também é um refém do ciclo da saudade eterna.  As lágrimas que vieram aos borbotões seguem à espreita de um momento que traga à tona lembranças inesquecíveis;  pode ser uma música, um filme, uma frase. E quando não se manifestam em sua forma líquida, costumazmente chegam secas, lágrimas que escorrem pelo pensamento, esse rebelde indomável que muitas vezes nos traz lembranças que não gostaríamos de ter ou que amamos preservar. Com o tempo, aprendemos também a domar esse adolescente rebelde e intempestivo – o pensamento, e nos acostumamos a viver como reféns da saudade.

Quando observo ao redor e percebo pessoas ainda livres desse ciclo, desperdiçando vida em conflitos irrelevantes, cultivando mágoas, dedicando seu tempo a nulidades, penso na incrível dor do arrependimento que brotará quando também se tornarem reféns.

Pois se a morte (ou nascimento, dependendo da referência) é uma das poucas certezas que temos em vida, o fato de que um dia nos tornaremos reféns do ciclo da saudade eterna, é outra. E quando isso acontecer, é recomedável ser ‘levado’ com a certeza de que você aproveitou seu período de ‘liberdade’ da melhor maneira possível.

Pense nisso, se ainda for livre. E se também for um refém, alimente da melhor maneira possível a liberdade daqueles que estão livres e próximos a você. Ela é finita.

Esse texto mistura fatos reais e suposições embasadas na fé. Os fatos, eu vivi. As suposições são os fatos da maneira que eu acredito terem acontecido.

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