Carta aberta ao meu amigo Ócio

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Caro Ócio,

Apesar de sua visita ter sido planejada, e de sabermos que conviveríamos por um tempo indeterminado, eu confesso que no começo, sua companhia foi um tanto desconfortável para mim. Afinal, nós éramos dois estranhos. A última vez que nos vimos com tempo de qualidade foi há duas décadas e eu ainda estava na faculdade, ‘metade da minha vida atrás’ . E o sujeito que você conheceu naquela época era apenas um projeto do que sou hoje, ainda com 20 anos de estrada a percorrer. Portanto, mais do que normal que nossa relação começasse com uma certa desconfiança. Nem podíamos dizer que éramos amigos; afinal, quando nos víamos nas férias era por um breve período, sempre interrompido por alguma atividade com a filharada, ou mesmo pelos malditos ‘ emails’  que nunca pararam de chegar. Éramos somente conhecidos, daqueles que levantam a sobrancelha quando se cruzam na rua, não mais que isso.

Hospedar alguém com quem você não tem intimidade em sua casa é um tanto incômodo; por isso, meu amigo Ócio (hoje eu posso lhe chamar assim), eu queria lhe pedir desculpas pelas primeiras semanas. Acho que lhe tratei um pouco mal. Espero que você me entenda, eu não estava acostumado a acordar cedo e ver você parado, me perguntando em pensamento com aquele seu olhar tranquilo: ‘ E agora, vamos ler um livro ou ir à piscina?’. Esse tipo de abordagem fazia com que eu me sentisse um vagabundo. Sei que estava errado, quero apenas lhe explicar por que fui meio grosseiro naquele período. Se voltasse no tempo, teria sido mais respeitoso contigo.

Diz o ditado que qualquer homem em sua companhia, dentro de casa, é como guarda-roupa no corredor: pode até ser útil, mas atrapalha. E de fato, devo admitir que no início de nossa convivência, me senti um estorvo em minha própria casa. Nós dois parecíamos atrapalhar a rotina de qualquer ambiente, ora por que o aspirador de pó pedia passagem, ou por que estava na hora de limpar o banheiro, ou mesmo quando reagíamos desprovidos de sorriso quando solicitações de pequenos serviços domésticos apareciam. Mas eu acredito que fui mais culpado que você nessa situação. Estava meio envergonhado da sua presença. Até minha mulher ficou meio ressabiada contigo, lembra?

Bem, tudo começou a mudar quando você me deu aqueles sábios conselhos para assumir toda a logística da gurizada. Levar os filhos na escola, acompanhá-los em seus compromissos, assistir às aulas de judô, educação física e até mesmo encarar o insuportável trânsito paulistano ao lado deles fez com que eu me sentisse mais ‘ pai’  do que nunca. Isso eu devo a você, meu amigo. Fazia muito pouco disso antes da sua visita. Continuarei a fazê-lo, mesmo sem a sua presença.

Você, meu caro Ócio, é um sujeito muito reflexivo e tranquilo, nada lhe tira do sério e a nossa convivência me ensinou a encarar a minha elevada ansiedade natural com mais serenidade. Você nunca permitiu que ela atingisse níveis intoleráveis. Também me ensinou a desfrutar ainda mais do meu prazer da leitura, desconectando-me completamente de qualquer outra preocupação alheia às páginas dos livros. Juntos, nos livramos do jugo da maldita ‘ blackberry’ e pude compreender como a vida fica mais leve sem aquela desgraçada. Aquilo foi um alívio e lhe serei eternamente grato. Nossas horas de reflexão foram inesquecíveis e muito apropriadas para quem inicia o outono da vida, como eu. Afinal, ‘ 40 x 2 = 80’. Até no médico você me influenciou a ir! Logo eu, que sempre fui um potencial paciente indisciplinado.

Você me apoiou quando decidimos ir com toda família para a viagem de ‘desintoxicação’ final. Foi trabalhoso, Ócio! Mas valeu a pena, e não teríamos encarado essa empreitada sem o seu apoio. Seu alto grau de sociabilidade nos converteu em participantes de maratonas de almoços! As pessoas me convidavam logo que sabiam que você estava comigo. Eu engordei por sua causa, Ócio. E não me venha com o discurso que você me incentivou a nadar mais. Isso é verdade, mas eu também comi muito mais por conta da sua companhia, e o resultado são esses 2Kg adicionais fortalecendo a musculatura do ‘ panceps’. Tudo bem, não é nada alarmante. Mas por que você não larga essa mania de comer muito? Sempre assaltando a geladeira muitas vezes por hora, com seus passeios investigativos pela despensa. Eu não tenho dúvida que o meu gasto mensal com alimentação foi substancialmente incrementado com a sua presença aqui em casa. Não me interprete mal, meu camarada. É apenas uma observação.

Lembra quando eu disse que no início éramos estranhos? Bem, com tudo isso que passou, fomos ficando mais próximos e confesso: passei a gostar muito da sua companhia. Você é desses caras que as pessoas sempre querem convidar para um ‘ happy-hour’ , seu alto astral irradia satisfação. Te considero um grande amigo hoje, Ócio!

Só que essa é uma carta de despedida. Foram três meses de convivência que começaram com desconfiança e terminaram em uma sólida amizade, mas apesar de tudo isso, você não paga as minhas contas, que são muitas. Desculpe a franqueza, você sabe que vou direto ao ponto. Tenho que dar sequência ao segundo tempo da minha vida, e como é de seu conhecimento, são três guris pequenos, logo mais terei que me associar a um açougue! Não é possível ficar ‘ curtindo a vida’  contigo despreocupadamente por tanto tempo…

Por conta disso, meu amigo, estou indo embora. Mas tenho por você um sentimento de profunda gratidão. Por sua causa, o segundo tempo a que me refiro será bem diferente do primeiro. As horas que eu passarei sem você serão melhores, mais produtivas. Serei mais feliz. E espero revê-lo, de tempos em tempos. Afinal, amigos de verdade não precisam estar sempre juntos para manterem firmes os laços de amizade!

Já estou com saudades, meu chapa. Mande notícias!

Um grande abraço,

Victor

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