Quando a tolerância se transforma em omissão

Toda virtude, quando levada ao extremo, pode se transformar em debilidade. A fortaleza em excesso abre guarida para a fraqueza. É assim que muito pragmatismo se transforma em falta de sensibilidade, muita sinceridade em inocência, muita emoção em impulsividade, e por aí vai. No caso brasileiro, somos reconhecidos por nossa tolerância. De fato, essa é uma virtude. Ela torna o convívio social mais ameno, pois tende a ofuscar manifestações mais radicais de preconceito, seja ele qual for. A história do Brasil confirma a tese de que somos uma sociedade mais tolerante que a  média. Ao longo de nossa trajetória como nação, experimentamos poucos eventos de ruptura violentos. Mesmo as mudanças mais relevantes ocorreram mais na base da conversa e menos nas armas. A nossa inegável tolerância seria fantástica,  se ela não trouxesse consigo altas doses do seu efeito colateral mais perverso: a omissão.

E infelizmente, somos tão omissos quanto tolerantes. Aceitamos pequenos delitos como parte da normalidade, e isso se estende a todas as esferas da vida. A flexibilidade, também uma virtude, se confunde com malícia e o cantado ‘jeitinho brasileiro’ muitas vezes se manifesta em um conjunto de artimanhas para burlar a lei. Não somente somos omissos em relação à malandragem, muitas vezes ela é venerada entre nós.

Se a tolerância exacerbada nos torna uma sociedade mais cordial, ela também é a mãe da impunidade, a erva-daninha que está sempre a corroer nossa trajetória em direção à civilidade. Toleramos mensalinhos e mensalões, reelegemos corruptos, nos omitimos em relação à bandalheiras diversas, ficamos quietos quando alguém fura a fila à nossa frente.

Toleramos uma das piores educações do mundo e contemplamos bovinamente as autoridades comemorarem nosso grande avanço: estamos na 53° colocação em Ciências e Leitura e na 57° em matemática de um total de 65 países. Na próximo teste PISA, quem sabe não ultrapassamos a Tailândia e a Jordânia e isso nos dê razões para novas celebrações. Nos omitimos em relação a um dos maiores exemplos de fracasso da administração pública brasileira, que é a falta de saneamento básico para a maioria da população, em pleno século XXI. Nos conformamos com a nossa secular cultura burocrática, uma das maiores responsáveis por nossa ineficiência na maioria dos setores da economia.

Tomo um acontecimento banal de hoje como exemplo: baderneiros estragaram a festa do carnaval paulistano. Houve gente invadindo o palco de apuração rasgando as cédulas, em cena típica de pastelão, seguido de tumulto, quebra-quebra e incêndio causado por coquetéis ‘molotov’. A Globo fez vistas grossas, afinal uma cobertura muito intensa desse papelão poderia causar danos à imagem do evento, e consequentemente prejuízo comercial. Depois  de muita conversa, foi anunciada a campeã. Alguém duvida de que os poucos que foram presos estarão na rua muito em breve, se vangloriando do seus atos, e que o restante de arruaceiros (as dezenas ou centenas deles) baterão ponto no carnaval 2013, como se nada tivesse acontecido? É assim que cultivamos as tragédias anunciadas.

Enfim, somos muito bacanas individualmente e pouco coesos coletivamente.

Não pretendo aqui fazer apologia da intolerância, muito pelo contrário – mas estou seguro que um pouco mais de senso crítico e um pouco menos de conformismo seriam sólidos pilares na construção de uma sociedade melhor. É hora de se inconformar!

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