Tragam todos os reféns.

Oito de outubro de 2025.

Escrevi muitos textos desde aquele 7 de outubro, há dois anos. Nenhum deles me apaziguou. Ontem, limitei-me a uma prece silenciosa em memória das vítimas daquele massacre. Mas os pensamentos sobre este momento disruptivo e sobre a inversão de tantos valores continuam inevitáveis. Dois anos se passaram. Às vésperas da definição da melhor possibilidade de cessar-fogo e do resgate dos reféns, reflito sobre Paz e Justiça. Ainda me parecem miragens. Seguem alguns registros.

1. Há dois anos, em um dos episódios mais brutais e covardes da história humana, três mil terroristas do Hamas e da Jihad Islâmica invadiram um país soberano, Israel. Assassinaram 1.200 pessoas — em sua esmagadora maioria, civis indefesos: homens, mulheres, idosos, jovens, crianças e bebês. Mataram, torturaram, estupraram. Riam enquanto o faziam, telefonavam às famílias para comemorar o massacre, filmavam e publicavam as atrocidades. Também sequestraram 251 israelenses e estrangeiros, arrastando-os para Gaza, onde foram recebidos como heróis. O ato foi justificado como “resistência”. Os reféns, homens, mulheres, idosos, jovens, crianças e bebês, foram escondidos em casas de moradores de Gaza e em mais de 500 quilômetros de túneis com passagens em escolas e hospitais.

2. O que se seguiu foi o horror da guerra. Alguma guerra se trava sem imenso horror e sofrimento? É sempre assim. Israel, repito, não deveria ter sido obrigado a travá-la. Ainda que tenha exercido o legítimo direito de defesa e de resgate dos reféns (um crime de guerra), as cicatrizes permanecerão por muito tempo na sociedade israelense.

3. Ressalte-se: houve um intervalo de três semanas entre o ataque do Hamas em Israel e o início da operação terrestre em larga escala. Quantas vidas teriam sido poupadas de israelenses e palestinos de Gaza com a exigência imediata da devolução dos reféns e da rendição do Hamas, com condenação inequívoca daqueles crimes, nos primeiros dias do massacre? Nunca saberemos. É sobre paz e a justiça. O que sabemos é que não foi isso que aconteceu. O preço agora é altíssimo.

4. Dois anos depois, 48 reféns ainda estão nas mãos dos selvagens e de seus cúmplices. Setecentos e trinta e três dias. 20 vivos e 28 mortos. O Hamas mantém cadáveres como prisioneiros, como moeda de troca. É inacreditável.

5. Dados sobre o massacre não são novos. Quantos são capazes de enxergá-los em sua dimensão humanitária? Não é complexo. Não deveria ser.

6. Li atentamente os vinte pontos do plano americano, apoiado por Israel e pela Liga Árabe. O ponto 5 me incomoda. Não consigo evitar. Tento pensar apenas nos reféns, mas sinto um déjà vu. Entre os que seriam libertados estão o mentor dos atentados ao Café Moment e à Universidade Hebraica; o mandante do assassinato do ministro Rehavam Ze’evi; o responsável pelo massacre do Park Hotel; e o autor dos atentados em ônibus que mataram 45 israelenses. Não direi seus nomes.

7. Que outro país no mundo é submetido a esse tipo de chantagem? Que nação foi instada a libertar os assassinos de seus civis em troca de reféns sequestrados e torturados? Nenhuma.

8. Mais: o ponto 6 prevê anistia (!) aos membros do Hamas que se comprometerem com a coexistência pacífica e o desarmamento, além de passagem segura para os que desejarem deixar Gaza. Imagino que não é preciso explicar a muitos brasileiros nascidos nas últimas cinco décadas o que isso significa.

9. A solução de dois Estados – rejeitada pela vizinhança, já na criação de Israel – pressupõe a óbvia coexistência entre judeus, árabes e persas, ou seja, o reconhecimento do direito legítimo de existência de Israel. Exatamente o oposto das ações do Hamas e da Jihad Islâmica em 7 de outubro, e do slogan entoado nas ruas do Ocidente nos dias seguintes ao ataque: “Do rio ao mar.”

10. É justamente isso que o plano – goste-se ou não – oferece: a maior chance até agora de coexistência. Cessar-fogo, libertação dos reféns, desarmamento do Hamas, exílio ou anistia para os terroristas e um governo em Gaza sem qualquer participação do Hamas. E um futuro para os que desejem a paz em Gaza. Quem ocuparia essa posição é uma incógnita, mas é preciso tentar um recomeço sobre um território devastado pela guerra provocada e perdida por seus líderes. O plano prevê ainda auxílio internacional. Quem se opõe à ideia de uma “Grande Israel” e entende que um Estado palestino é parte da solução, tem uma ideia melhor?

11. A resposta do Hamas não foi imediata e não revela um real aceite do plano. Ao contrário, o rejeita, especialmente na cláusula que poderia encerrar o conflito. O último parágrafo da declaração afirma que o grupo contribuirá “com total responsabilidade para um quadro nacional palestino abrangente”. A frase sinaliza a recusa em abrir mão do controle político de Gaza, exigência central do plano, o qual, diga-se, é inacreditavelmente benéfico ao Hamas, como se vê nas cláusulas 5 e 6.

12. Ontem, em declaração, o Hamas se referiu ao 7 de outubro como o segundo aniversário de uma batalha “abençoada”, um “glorioso dia”. É dessas lideranças que se espera coexistência?

13. Na batalha de narrativas, registre-se: o plano proposto prevê que, assim que todos os reféns forem libertados, Israel libertará 1.700 prisioneiros – que incluem habitantes de Gaza detidos pelas forças israelenses durante a guerra -, e 250 condenados cumprindo sentença de prisão perpétua, principalmente por acusações relacionadas ao terrorismo.

14. Deve ser o primeiro caso na história em que um Estado acusado de “genocídio” – aspas sempre, já escrevi bastante sobre isso – propõe anistia ao inimigo e troca reféns por prisioneiros, aceitando coexistência e reconstrução com futuro para seus habitantes. O plano, portanto, parte de uma lógica oposta à tese de genocídio: reconstrução de Gaza, anistia a combatentes, preservação da população civil e um horizonte para a criação de um Estado palestino.

15. E o que fez o Hamas além de declarações como a de ontem? Seguiu a estratégia da procrastinação que tem adotado durante esses dois anos, em que outros acordos de cessar fogo em troca da libertação dos reféns foram recusados. Deve ser também o primeiro caso da história em que uma liderança política resiste a interromper o suposto “genocídio” de sua própria população.

16. A Teoria dos Jogos oferece uma explicação. O Hamas procrastina e é evasivo com método. Age como ator racional diante da fraqueza moral do Ocidente, explorando incentivos. A decisão de cometer um crime depende do balanço entre ganhos esperados e probabilidade de punição. O Hamas atua nesse vácuo. Quando a punição é improvável, o crime se torna racional. Se o terrorismo rende narrativas, visibilidade, financiamento e impunidade, ele se torna estratégia. É isso o que se quer? Eu nunca.

17. Refiro-me acima à racionalidade estratégica diante da negociação de paz. Ainda sob a ótica da Teoria dos Jogos aplicada a guerra iniciada pelo Hamas, há os ganhos (payoffs) obtidos pelo jogador após determinada estratégia. Normalmente, no contexto das guerras convencionais, pensamos sobretudo em ganhos de território, vantagem financeira ou poder. Acontece que, quando tratamos do terrorismo, especialmente dos grupos fundamentalistas islâmicos, há ganhos simbólicos, espirituais e narrativos. Sacrifício e martírio podem gerar recompensas como prestígio interno, fortalecimento ideológico ou visibilidade global. Nesse tipo de jogo, o jogador não precisa vencer a guerra. Precisa parecer moralmente vitorioso. E foi isso o que vimos nas narrativas desde 7.10.23: o massacre foi enquadrado, nas horas seguintes, e em sincronização com as manifestações nas ruas e nas redes sociais, como um ato heroico de “resistência”. Oprimido x opressor. Já o drama humanitário em Gaza, como já tratei em outro texto, um território maximizado estruturalmente para a guerra e para esse sofrimento, com cerca de 500 km de túneis sofisticados sob áreas civis densamente povoadas, inclusive escolas e hospitais, jamais noticiados como abrigos para civis não combatentes durante a guerra, foi apresentado como prova de genocídio. Resultado da inversão: o jogador/algoz se tornou vítima. Uma jogada dentro do jogo, com conquista de vantagem moral diante da plateia mundial. O Hamas estava plenamente ciente de que perderia militarmente. No mínimo, jogou com essa perspectiva em 07.10.2023. E isso é racional, dentro de um sistema moral invertido.

18. Pode-se dizer que um grupo terrorista islâmico iniciou uma guerra regional contra uma potência muito mais forte e a perdeu militarmente. Mas é forçoso reconhecer que tem vencido na arena mais vulnerável das democracias ocidentais: o imaginário coletivo, moldado por narrativas desconectadas da realidade e dos padrões mínimos de civilização.

19. Tudo alimentado por parte de uma imprensa que aceitou o autor de um dos piores ataques terroristas da história, um morticínio selvagem, como fonte de informação. Shame on you. O que se viu em parte do ambiente acadêmico tomado por extremistas parece saído de um filme de terror. E é mesmo de terror que se trata.

20. Isso teria acontecido sem uma plateia disposta a ser usada, seja por afinidade ideológica, mesmo pisando em corpos mutilados e violentados, seja porque a mentira oferece uma espécie de conforto moral?

21. Meus estudos de psiquiatria forense não vão tão longe a ponto de compreender essa dinâmica. Os de direitos humanos, contudo, recomendam lembrar do sofrimento indescritível dos reféns e suas famílias. E rezar para que o marco zero do acordo, a devolução integral dos reféns, se concretize. Tento pensar apenas nessa urgência. E na inutilidade de tentar entender mentes tão fracas.

22. Que não se perca de vista, todavia, que garantias para que o Hamas jamais volte a iniciar uma guerra é um objetivo legítimo, reconhecido pelas convenções internacionais. EUA, França e Reino Unido não pensariam ou agiriam diferente se um 7 de outubro ocorresse em seu território.

23. Seja como for, o país acusado de “genocídio” aceitou o acordo de cessar-fogo. Cobre-se do Hamas (que iniciou a guerra e a perpetua alimentando dor e sofrimento com a violência que pratica em Gaza e suas falsas narrativas), com suas exigências políticas, e dificuldades apresentadas para localização de todos os reféns, caso a proposta não avance como esperado.

24. O que virá é incerto. Teremos uma definição hoje ou amanhã? Às vésperas do resultado do prêmio Nobel da paz? Os bastidores das negociações são opacos e envolvem interesses que vão muito além de Gaza – EUA, Turquia, Catar e todo o mosaico de clãs e agendas regionais.

25. Goste-se ou não dos proponentes do plano, certo é que uma paz duradoura entre israelenses e palestinos depende dos três pilares previstos na proposta: a libertação imediata dos reféns, a erradicação do Hamas como ator político e a desmilitarização de Gaza. Qualquer solução que ignore isso não será paz, mas apenas o intervalo até a próxima guerra.

26. Reafirmo meu apoio à existência de Israel, ao seu povo e ao seu direito de se defender. Este texto é especialmente dedicado às vítimas diretas do 7 de outubro e à comunidade judaica. Muitos deixaram de se manifestar por medo. Nada disso me impede de me sensibilizar com as vítimas colaterais de qualquer guerra. Não é diferente em Gaza. Especialmente as crianças, vítimas de uma sociedade doente que maximiza seu sofrimento e as manipula desde a mais tenra idade.

27. Compaixão, contudo, não deve turvar o julgamento. Não há simetria moral possível entre agressor e agredido. Sigo apoiando o único Estado judeu do mundo, atacado em 7 de outubro, cuja necessidade de existência tornou-se ainda mais evidente desde então.

28. Responsabilizar o Hamas pelos crimes de 7 de outubro e pelos efeitos colaterais da guerra não absolve obviamente Benjamin Netanyahu, que tem muito a explicar – aos israelenses, não a mim -, sobre a relação de seu governo com o Hamas e o Catar, e sobre as falhas de segurança que permitiram o massacre.

29. Minhas preces e meu coração permanecem com os que se foram de forma tão brutal naquele dia, com os que choram sua ausência até hoje, e com todos os reféns, seus amigos e familiares. Sem alimento, sem água, sem ajuda médica ou humanitária.

30. A paz começa com a libertação dos reféns e com a coragem moral de não confundir vítima e algoz. Enquanto um único refém permanecer em cativeiro, não haverá paz. Isso é intolerável. O presidente americano disse que a libertação de todos os reféns se daria dentro de 72 horas após Israel aceitar seu plano. Já se passaram 210 horas.

Por Israel, pelos palestinos que desejam viver em paz e pelos valores que muitos no Ocidente parecem ter esquecido, desejo justiça e paz – mesmo que ainda me pareçam miragens.

Am Israel Chai.

We Will Dance Again.

E de novo.

Nunca mais é nunca mais.

Tragam os reféns para casa.

P.S. Esse texto foi postado pela manhã. À noite, foi noticiada a assinatura do acordo pelo presidente americano, Donald Trump:

https://www.instagram.com/p/DPkZZFDDATG/?igsh=MTR0ZTR2cDgxN3kyNA%3D%3D

Via Jonathan Schanzer/FDD, no X:

“O acordo terá pelo menos duas fases. Uma para reféns vivos. A (s) outra (s) para reféns mortos. Israel libertará prisioneiros de alto valor. A direita israelense não gostará. Mas Bibi não recuará. A menos que o Hamas viole os termos, a guerra está terminando. Todos os envolvidos parecem aliviados.”

Deus permita que assim seja. Atualizar esse texto com o que me parecia apenas uma miragem no início dele, o retorno de todos os reféns para Israel, é a melhor das opções. O Marco zero – seja para alguma paz ou para alguma justiça – é a libertação de todos os reféns.

Editado em 12.10.25:

Assisti ontem à minissérie Red Alert (Paramount+).

São quatro episódios de cerca de 45 minutos cada. Vi todos de uma vez. Emocionalmente devastadora e necessária.

A série foca nas experiências vividas por diferentes famílias, sem recorrer às cenas mais brutais de terror daquele 7 de outubro (como violência sexual, decapitação ou esfaqueamento). Eu cheguei a pensar em não ver, por receio disso, especialmente agora, no iminente início do prazo da primeira etapa do acordo americano para o retorno de todos os reféns, vivos e mortos. O impacto ocorre por outras razões. Eu conhecia algumas das histórias. É duro. Eu já comecei a sentir esse impacto no trailer.

Justamente ontem, o jornal The New York Times publicou que teve acesso às instruções detalhadas que Yahya Sinwar e os comandantes do Hamas deram para alvejar civis em 7 de outubro. Lá estão orientações específicas para o nível de selvageria a ser adotado, como incendiar casas com pessoas dentro, entre outras. Crimes premeditados, com dolo específico e crueldade indescritível. Tudo deveria ser filmado e divulgado para todo o mundo islâmico. Também ficou evidente a ênfase na captura do maior número possível de reféns. Um mal absoluto da nossa época, que nunca mais poderá se repetir.

Red Alert mostra tudo isso sem sensacionalismo. É uma produção israelense, falada em hebraico e árabe, baseada em fatos reais e narrada pelos olhos de diferentes famílias, inclusive uma muçulmana. A força da série está na humanidade de muitos naquele dia: no amor, na coragem, na solidariedade diante do inimaginável. Fiquei com muitas dúvidas, perguntas e um sentimento ainda maior de urgência pelo retorno de todos os reféns. Agradeço a todos os envolvidos por essa obra, incluindo o legendário produtor executivo de Bastardos Inglórios e Pulp Fiction, Lawrence Bender, e à Paramount+ por disponibilizá-la.

Todos deveriam assistir.

Também recomendo a leitura do artigo do Felipe Moura Brasil “20 pontos sobre guerra e paz em Gaza”, publicado em 9.10.25, O Antagonista. Ele funciona como um bom complemento desse texto, com 30 pontos sobre justiça e paz, escrito em 8.10.25. 



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