Pitacos sobre o polêmico voto impresso

Graças às dezenas de comentários na minha página, compreendi a lógica por trás da proposta do voto impresso. O eleitor efetuaria o voto eletrônico normalmente e depois o confirmaria em um papel fornecido por uma impressora conectada à urna eletrônica. Após sua visualização, o mesmo seria depositado em outra urna (manual) para fins de auditoria, se fosse necessário.

Antes de entrar no assunto, vanos abordar o tema de fraudes genericamente. Em um negócio transacional qualquer, a implantação de medidas anti fraude sempre tornará o processo mais ‘burocrático”. Assim, quem trabalha com prevenção contra esses eventos deve ter em mente qual seu impacto no volume de transações e o custo para executá-las. No limite, um processo com zero transações não tem fraude, mas tampouco gera negócios.

A correta equação entre a implantação de uma camada adicional de proteção versus seus efeitos colaterais precisa ser estabelecida. Se você tem um processo cuja incidência de fraude é insignificante, adicionar uma proteção pode lhe custar muito em termos de receita e quase não reduzir suas perdas. Seria um decisão economicamente ruim.

Vou citar um exemplo para ficar mais claro: o advento dos chips nos cartões de crédito reduziu bastante a fraude em relação aos antigos plásticos (apenas com tarjas magnéticas). No  Brasil, por muito tempo as instituições financeiras postergaram a implantação do cartão com chip nos segmentos de baixa renda (e menores limites) porque não eram alvo dos fraudadores e o custo de emissão de um novo plástico não se pagava tão cedo. Normalmente optava-se por substituir o cartão após seu prazo de validade expirar e convivia-se com o risco de maior fraude nesse período. Era a decisão racional. .

Aliás, também foi por essa razão que nos EUA a adoção de cartão com chip levou muito mais tempo, a incidência de fraude por lá sempre foi muito baixa, então não fazia sentido, por uma questão de custo, a adoção imediata da nova tecnologia.

A implantação do chip também causava uma redução na utilização inicial do cartao (esquecimento de senha, etc) e isso tudo era colocado na conta antes de “chipá-lo’.” O custo da reposição do plástico e a queda na receita deviam ser compensados pela redução na perda por fraude. Em quanto tempo isso acontecia? Cada instituição determinava que tipo de “pay back” era aceitável, conforme seu apetite de risco, e a partir daí tomava sua decisão.

Quando lidamos com probabilidades, é importante dizer que não existe a decisão certa ou errada sem que haja uma definição clara de qual é a sua tolerância a riscos.

Tendo isso em mente, vamos ao polêmico tema do voto impresso. A primeira pergunta que se deve fazer é se o sistema atual é seguro suficiente. Além de sê-lo, deve passar segurança de que é, por se tratar de um pilar essencial para nossa democracia (não basta ser, precisa também parecer).

Não sou especialista no assunto, mas pelo que li em vários artigos, não me parece que o sistema atual seja suscetível a uma fraude massiva sem que várias pessoas estivessem comprometidas e esquemas desse tipo cedo ou tarde acabam vazando (isso nunca aconteceu).

Porém, não ser suscetível facilmente a uma fraude massiva não significa que não esteja vulnerável a pequenas fraudes “no varejo”, e obviamente que a inserção de uma segunda camada de proteção imediatamente inibiria boa parte dos eventos ou tornaria sua realização mais difícil. Essa funcionalidade já estava prevista por ocasião da adoção do modelo de urna eletrônica no início do século, não é nenhum absurdo que sua discussão seja retomada.

Comenta-se que seu custo de implantação esteja na casa dos R$ 2 bilhões, e isso não seria gasto à vista, não me parece algo exorbitante diante do orçamento geral do governo federal. Mas como o diabo mora nos detalhes, uma eventual implantação do voto impresso deveria vir acompanhada de regras que não transformem o nosso processo eleitoral na casa da mãe Joana. Retomando a analogia com eventos transacionais, o risco nesse caso consistiria nos benefícios (inibição de fraudes e maior segurança) serem inferiores aos danos gerados pelos efeitos colaterais (um sistema mais caótico).

Não podemos nos esquecer que são disputadas várias eleições ao mesmo tempo, além das majoritárias para presidente. A abertura de uma contagem manual solicitada por qualquer candidato derrotado a deputado, por exemplo, poderia tornar a apuração infindável. Aliás, a contagem manual também é suscetível  a fraudes, cabe o lembrete. E no caso das urnas eletrônicas e as físicas indicarem uma diferença de 2-3%, o que fazer? Qual o resultado prevalece e por que? São apenas exemplos simples de uma gama de situações que podem gerar muita confusão, se mal definidas na largada.

O assunto estará em pauta no Congresso e para que uma alteração seja válida nas eleições de 2022, precisa ser aprovada até Outubro. Não é muito tempo e há um risco da “emenda sair pior que o soneto”. O problema não está na tecnologia do voto impresso em si, me parece uma funcionalidade simples, mas nas regras que serão aplicadas em sua utilização.

Apesar de um sistema eleitoral com essa camada adicional de proteção reduzir a possível incidência de fraudes, não eliminará as versões de que eleições foram roubadas, haja vista o último exemplo do pleito americano. Não faltariam vídeos de urnas sendo adulteradas, fotos de votos físicos diferentes dos mostrados pelas eletrônicas e assim por diante. Em tempos de “pós verdade” , todo tipo de narrativa é possível e não será o voto impresso que acabará com isso.

O fato do presidente Jair Bolsonaro ter dito irresponsavelmente que tinha evidências de fraude nas eleições de 2018 sem jamais  provar absolutamente nada ( o que convenhamos ou o converte em um mentiroso bravateiro ou em covarde omisso) fez com que a parte da população que lhe faz oposição se alinhasse automaticamente contra a ideia do voto impresso e a parte que lhe apoia a favor. É importante se desapegar desse “confronto”, o assunto precede a Bolsonaro. A funcionalidade é simples e poderia inclusive ter sido lançada no advento da urna eletrônica.

Entendo que é um debate válido e que deveria ser abraçado por todos, sob o risco de que tenhamos um arcabouço de regras que consiga piorar o sistema. Em se tratando de Brasil, o retrocesso é uma possibilidsde real. Se ao final do dia, tivermos um sistema eleitoral mais robusto e um processo de contagem simples e direto, qual o problema? A eficácia do modelo atual não deveria ser um “dogma incriticável”, melhorias são sempre bem vindas, tampouco essa discussão deveria ser polarizada. A discussão deveria ser técnica, movida pelo pragmatismo. Infelizmente, no Brasil atual, mesmo os assuntos mais simples são matéria prima para uma sanguinária luta de MMA…

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