Reflexões covidianas VII – O fim…da paciência

Quem diria que o ano de 2020 iria acabar após mal começar? O mundo entrou na toca durante o mês de Março e após 5 meses segue parcialmente confinado ou mascarado, com boa parte dos hábitos de outros tempos sob suspeição até a chegada de uma vacina. Há os que dizem que tudo é um grande exagero, outros que o apocalipse é logo ali na esquina, eu prefiro me posicionar no meio termo.

É provável que quando tudo isso passar tenhamos uma série de equívocos listados no guia ‘Como não se deve reagir em uma pandemia’, com acusações de todos os lados sobre o que poderia ser evitado ou executado de outra forma. É sempre mais fácil fazer análises após a passagem da tormenta, difícil é manter a sanidade durante o caos. De qualquer maneira, me parece que até o momento o vírus ludibria a humanidade e fornece elementos para os lados antagonistas clamarem por razão. Está claro para mim que tanto catastrofistas quanto negacionistas manterão suas posições após o final da maldita.

E ele será sucedido por um desafio econômico imenso para governos cujos endividamentos aumentarão substancialmente, empresas com faturamentos reduzidos e sob risco de bancarrota, cidadãos que perderam o emprego ou renda e outros tantos que de uma hora para outra assumiram dívidas possivelmente impagáveis. Será um pós guerra, de severidade idêntica ou maior que a crise de saúde em si. É claro que como em toda situação dessa natureza, oportunidades se abrirão e aqueles que souberem aproveitá-las poderão crescer muito mais do que imaginaram, mas serão exceções. O ecossistema, como um todo, sofrerá como nunca desde a Segunda guerra.

Infelizmente, não aproveitamos dessa confusão para darmos um salto de qualidade institucional ou melhorarmos como país. Aliás, tivemos exemplos da nossa carência de lideranças que façam a diferença em crises. Quando a pandemia se aproximava, escrevi um texto fazendo uma analogia à situação da Inglaterra nos idos de 1941-1942, quando combatia sozinha a Alemanha nazista, com a Europa já rendida e ainda sem o apoio americano, resistindo bravamente no limite de suas forças aos ataques germânicos. Esse período foi posteriormente descrito por Winston Churchill como ‘Our finest time’, ou ‘Nosso melhor momento’, pois os britânicos se uniram, independentemente de ideologias, sob um objetivo comum e sobreviveram estoicamente a um período de escassez e necessidade brutais. Emergiram da guerra mais fortes como nação e os meses de agruras foram daqueles que moldaram o caráter de seu povo para sempre. Nada semelhante esteve próximo de acontecer no Brasil.

É possível que essa convergência de objetivos durante a pandemia tenha sido observada em alguns países europeus ou orientais, falta-me conhecimento de causa para me aprofundar no assunto. Por aqui desperdiçamos uma grande oportunidade de sairmos melhores do que entramos. Faltaram estatísticas, coordenação, liderança, informação e transparência em todas as esferas do poder público, seja municipal, estadual ou federal. Exceções sempre existem, mas apenas comprovam a regra.

Houve também alguns exemplos de pouca cooperação da população, muito embora eu os considere fatos isolados, devidamente exponencializados pela mídia e redes sociais. É claro que jamais teremos a disciplina anglo-saxônica, somos uma cultura de proximidade, de abraços, beijinho no rosto e tapinha nas costas, essa questão do distanciamento é um desafio ainda maior pelas bandas de cá, porém tampouco é exigido dos habitantes do hemisfério norte um confinamento em residências precárias e sem saneamento básico, situação de quase metade dos brasileiros. Então, vamos dar um desconto ao discurso acusatório e vira-lata de que somos piores em tudo.

Cá estamos nós já exauridos de um processo de reclusão que começou em Março, ‘meia calabresa, meia muçarela’, provavelmente precoce em muitas localidades, mas instituído para achatar a curva, ou postergar o efeito devastador do vírus. Bem ou mal, o objetivo de não colapsar o sistema de saúde foi atingido na maior parte do país, mas ainda convivemos com índices de óbitos diários acima dos níveis consideráveis toleráveis ou de saída para pandemia. O confinamento já não é uma opção para muitos e parcamente vamos reestabelecendo um cotidiano de restrições, ainda que preservando algum grau de mobilidade, antes inexistente. A bem da verdade, ninguém aguenta mais essa conversa de covid. Haja resiliência para a pandemia mais longa do planeta.

Não bastasse tudo isso, temos que conviver com a soltura de bandidos, sob as escusas de riscos de contaminação. Foram alguns milhares, provavelmente a maioria em condições de bancar bons advogados, incluindo traficantes que obviamente se tornaram foragidos da justiça. O Brasil desafia a nossa paciência diariamente.

A politização do vírus e tudo que o cerca fez mal ao país, transformando possibilidades em dogmas. Em um ambiente onde a incerteza reina soberana, permanecer fechado nas próprias convicções pela simples razão de A ou B, de quem gostamos ou detestamos, pensar de um jeito, beira à irracionalidade. Mas no Brasil de 2020 está tudo assim. Não há espaço para debate, somente xingamentos. Somos reféns do ‘binarismo totalitário’ dos tempos atuais. Estamos em processo de emburrecimento coletivo. Que Deus nos traga sorte para enfrentar o que vem por aí, pois falta-nos juízo e boa temperança. Um dia a menos para o final dessa infeliz pandemia.

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