O dia em que eu quase bati as botas

À medida que os anos passam, perdemos os registros de dias completos que ficaram para trás, restando-nos na maior parte dos casos as sensações acumuladas das diversas experiências que tivemos. Muitas vezes, fotografias e filmes servem como dispositivos auxiliares da memória, nos iludindo quanto à sua capacidade. De tanto olhá-las e assistí-los, ficamos com a impressão de que nos recordamos exatamente do que aconteceu, quando na verdade são esses ‘dispositivos’ que nos fornecem estímulos para criar a lembrança ao redor das fotos e filmes..

Porém, existem situações que de tão marcantes que foram, desafiam o processo natural de esquecimento e nos conferem o privilégio de reter detalhes longínquos. Eu tenho ‘flashes’ da minha infância, e algumas recordações completas (não muitas) dos últimos 39 anos, 11 meses e 19 dias. A história a seguir é um desses registros vívidos em minha memória, e apesar de assustadora é muito útil, pois mantém acesa a consciência de que vivo em um lugar semi-civilizado. O recente recrudescimento no índice de homícidios da cidade de São Paulo me chamou a atenção para o fato de que há 15 anos, eu quase encorpei essa estatística. Por muito pouco eu não bati as botas em plena Avenida Paulista.

Tinha um assunto para resolver na Caixa, que ficava a umas cinco quadras do banco onde trabalhava. Sacaria o dinheiro relativo ao meu FGTS, um valor tão alto quanto minha experiência profissional, na época tão densa quanto ar rarefeito. Meados de 1997, e um clima timidamente frio, mas ensolarado, tornava a caminhada pela avenida mais paulistana da cidade bastante agradável, algo que aprecio até hoje. Aproveitei o horário de almoço para fazê-lo. Era um trajeto bastante conhecido, pois quase todos os dias o percorria à noite para ir à Fundação Getúlio Vargas, nas cercanias. Por conta dessa normalidade e do fato de estar cercado por uma multidão de pedestres com o andar mais apressado do Brasil, jamais passou pela minha cabeça que a minha segurança poderia ser ameaçada.

Antes de entrar na Caixa, na esquina de uma travessa da avenida em frente à agência, observei uma ‘van’ de cachorro-quente, hoje lamentavelmente expurgadas do cenário da cidade, mas na época ainda muito populares e presentes em qualquer ponto com maior tráfego de pessoas. Passei o tempo na fila do banco sonhado com um ‘dogão’ completo com purê e batata-palha. Navegar na internet ou digitar mensagens em ‘smartphones’ eram ficção científica. Os celulares eram tijolaços, difíceis até de caber nos bolsos e ainda um ‘bem’ não disponível para todos. Eu não tinha um. Recordo-me que passei uns bons 20 minutos na fila. Finalizado meu atendimento, coloquei o dinheiro no bolso interno no meu paletó e saí. Mesmo não sendo um prêmio de loteria, se aproximava de um mês do meu salário. Bem ou mal, ajudava a pagar muitas contas.

Me dirigi ao ‘cachorreiro’ e pedi o meu tão esperado ‘dogão completo’. Usava sapatos, calça  e cinto pretos, uma camisa social azul ‘jeans’, gravata azul escura e um paletó cinza com tons de xadrez. A memória chega nesse nível de detalhe. Na terceira mordida, fui surpreendido por uma chave de braço ao redor do meu pescoço, puxando-me para trás. O cachorro caiu no chão. O sujeito, a quem nunca cheguei a ver, praticamente me sufocava e eu, em um gesto incosciente tentava me desvencilhar. No mesmo momento, um segundo homem chegava pela frente, sacando um revólver de cano longo e encostando no meu peito. Um terceiro, seguindo ordens do sujeito armado, me revistava, em busca de dinheiro. Na tentativa de encontrá-lo, rasgou o bolso de minha camisa. Ouvia um deles gritar: ‘Passa a grana, passa a grana, senão vai morrer!’. Foi tudo tão rápido que não tive tempo para me apavorar.

A eternidade daqueles segundos seguia e o gelo do metal do revólver encostado em meu peito tornava a situação aterrorizante. Eu, instintivamente tentava me desvencilhar daquele que me sufocava. Não que eu estivesse reagindo ao assalto, estava inconscientemente resistindo a um estrangulamento. Nesse momento, uma mãe, felizmente nervosa, que caminhava com o seu filho bebê, assustou-se com a situação, e perdeu o controle do carrinho, que desprendeu-se em direção à rua, no caso a travessa da Avenida Paulista, e não a própria. Do fundo da minha memória eu ainda consigo escutá-la gritando ‘meu filho, meu filho!!’, talvez ecoando o mesmo grito que minha mãe, a 400 quilômetros de distância, daria ao me ver na situação em que estava.

O  nervosismo e os gritos daquela mãe assustaram a bandidagem. Depois de alguns segundos, que me pareceram horas, eles acabaram batendo em retirada, pois a situação havia atraído a atenção de muita gente. Lembro-me de olhar para trás e ver o sujeito armado recolher o revólver sob a camisa enquanto corria. Eles falharam em seu intento. Não levaram um tostão. Tivesse colocado o dinheiro no bolso da calça, estaria naquele momento um mês de salário mais pobre. Algum pedestre interceptou o carrinho de bebê da mãe que me salvou. Eu estava vivo. Havia perdido o almoço e a fome. O vendedor de cachorro-quente me ofereceu um um copo de guaraná para eu me acalmar. Aceitei.

Ainda em estado de choque, retornei ao meu trabalho, em passos lentos. Foram as cinco quadras mais longas que já percorri. Um desconhecido, de bom coração – sempre surgem os bons samaritanos nessas horas – me acompanhou no trajeto, perguntando se estava tudo bem e tecendo comentários sobre a descabida falta de segurança no país. Naquele momento, eu não estava entre os  melhores ‘proseadores’. ‘Onde já se viu? Às 13 horas, em plena Avenida Paulista!’. Respondia com um sorriso contido em monossílabos. Em alguns minutos, estava novamente seguro. Agradeci a companhia do meu benfeitor ‘terapeuta’ pós-assalto, atravessei a rua e retornei ao escritório. As pernas ainda bambas e o corpo levemente trêmulo clamavam por uma cadeira. ‘Aconteceu alguma coisa? Você está pálido!!!!!’. Foi o primeiro comentário que ouvi.

Não tenho dúvidas de que os três bandidos que me renderam naquela tarde repetiram a dose com outras pessoas no mesmo dia. Também estou seguro de que eles foram protagonistas de homicídios em suas carreiras criminosas. Antes ou depois daquele evento. Acho pouco realista que algum deles tenha se regenerado e seguido o caminho da honestidade e provável que 15 anos depois, ao menos um dos três, já deva estar expiando suas ações em outro mundo.

No Brasil é praticamente impossível que alguém não tenha vivenciado uma história parecida ou que ao menos conheça uma pessoa que passou por esse tipo de experiência. Nos conformamos com a banalização da violência. A quantidade de homícidios em algumas das principais cidades brasileiras aproximam nossas estatísticas daquelas provenientes de países em guerra civil. O pior é que muito mais que 90% dos casos não são resolvidos. É um misto de descaso e incompetência das autoridades com a perenidade da impunidade. Nossa legislação frouxa faz com que o bandido, mesmo preso, consiga muitas vezes retornar à liberdade muito rapidamente. O desrespeito com a ‘vida’ é uma das maiores comprovações do nosso grau intermediário de civilidade, para o desconsolo de muitas dezenas de milhões de brasileiros.

Para efeito de comparação, valho-me de um exemplo da polícia inglesa, tida como uma das mais eficientes do mundo, em um prosaico dia de semana, quando retornava do trabalho, em 2007. Chegando na esquina da quadra onde morava, fui surpreendido por uma grande placa amarela, que nunca estivera ali, com uma frase que dizia mais ou menos o seguinte: ‘Ontem, nesse local, uma senhora foi agredida por três criminosos em bicicletas, que a derrubaram e roubaram sua bolsa. Estamos trabalhando firmemente para encontrá-los e em caso de informação sobre o caso, por favor entre em contato com a polícia’. Confesso que me senti bem quando li a placa. Naquela hora, tive a impressão de que os vultosos impostos que pagava ao governo britânico eram bem aplicados. Que diferença em relação à realidade ‘tupiniquim’. Já imaginou se a moda pega no Brasil? Faltaria calçada para tanta placa…!

O fato é que meu anjo da guarda interferiu em meu favor naquele dia, talvez soprando o carrinho de bebê para o meio da rua. Estive a um deslize do dedo indicador de um bandido para partir desse mundo precocemente. Em relação a esse ‘causo’, sinto-me como um sobrevivente de um grave acidente. A proximidade da ‘hora definitiva da partida’ foi a mesma.

Tivesse o desgraçado puxado o gatilho, mesmo que por engano, eu não teria casado, muito menos tido três filhos. Perderia o auge do Vascão no final daquela década, sua posterior decadência e o seu renascimento (ainda sob suspeita). Não testemunharia a continuidade da revolução digital, nem o primeiro operário e a primeira mulher presidentes do Brasil. Perderia a chance de ver corruptos graúdos condenados pela primeira vez em 512 anos, assim como a oportunidade de aprender muito da vida nos 15 anos que se passaram, bem mais que nos 24 anteriores. Enfim, seria um desperdício. Tal qual milhares que acontecem todos os anos no Brasil, país onde muitas vidas são desperdiçadas sob olhares omissos dos nossos ávidos arrecadadores de impostos.

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