Quem mora e dirige em São Paulo tem o ´privilégio´ de tirar dois mini-sabáticos diários, período em que não se produz e onde o foco está concentrado nos automóveis ao redor, motoboys enfurecidos e marronzinhos ávidos por encorpar a receita da prefeitura, ´tão carente de recursos´. Passar mais de uma hora por dia no trânsito é algo corriqueiro por aqui. E como tudo na vida, é possível encontrar o aspecto positivo da difícil mobilidade paulistana. O benefício oriundo do fato de milhões enfrentarem diariamente o trânsito lento por dezenas de quilômetros é que a cidade conta com um leque bastante diversificado na programação de suas rádios. De notícias a futebol, passando por músicas de todas as vertentes, não faltam ótimas opções. Em uma dessas manhãs como ouvinte, fui provocado por uma discussão bastante controvertida, que dizia respeito à liberdade de expressão.
O tema foi puxado pela proibição de uma biografia de um sindicalista da região de Piracicaba por uma de suas filhas, que entrou na Justiça e conseguiu bloquear a edição do livro. Com base nesse fato, foi colocada no ar a pergunta que cada participante avaliou a seu modo: Teria alguém o direito de editar uma biografia não autorizada de uma pessoa, sem o seu consentimento?
A pergunta vai muito além do embate entre personagens públicos e ‘paparazzis’, alimentados pelas revistas de celebridades. Não se trata disso. Até que ponto a liberdade de expressão pode invadir a intimidade das pessoas? Roberto Carlos ganhou na justiça o direito de impedir a circulação de um livro a seu respeito. Uma das filhas de Mané Garrincha também evitou por dois anos que o livro sobre o seu pai fosse comercializado. Quem teria razão?
A primeira participante sustentou a tese de que em vida, a pessoa teria sim o direito de bloquear publicações não autorizadas a seu respeito, nesse caso concordando com a atitude do Roberto Carlos. A liberdade de expressão teria como limite a privacidade de cada um, que não poderia ser invadida sem o consentimento do protagonista. É bem verdade que em tempos de internet, o bloqueio da informação é praticamente impossível, mas ainda assim seria importante que a Justiça estabelecesse limites para proteger os indivíduos contra esse tipo de situação.
Já o último participante defendeu a posição diametralmente oposta. A liberdade de expressão deveria ser universal e caso alguém se sentisse ofendido por alguma publicação caluniosa, deveria buscar a reparação na Justiça. Não fosse assim, jamais teríamos acesso a aspectos relevantes a respeito da vida pessoal de personagens conhecidos, que podem também ser de interesse ou utilidade pública. Aqui, Roberto Carlos foi criticado por ter impedido a publicação de um livro que ele sequer havia lido, pelo simples fato de que não gostaria de ver sua vida devassada por alguém que ele não autorizou a fazê-lo.
Do ponto de vista de uma figura pública, também esse conceito pode ser polêmico. Afinal, quanto mais famoso alguém é, mais ele ‘vende notícia’ e portanto será alvo potencial de informações de origem duvidosa e objetivos escusos, e frequentador de fóruns e escritórios de advocacia. É o ônus de estar em evidência. Desagradável. Nesse caso, o anonimato é uma dádiva.
O fato é que ao ouvir o tal programa de rádio matutino, no meio de um trânsito intenso rumo ao trabalho, fiquei pensando sobre o assunto ao longo dos dias seguintes. Por mais que tenha assimilado os argumentos pró-privacidade, mantive-me fiel a meus valores: a liberdade de expressão jamais pode ser censurada. Se isso acontecer, a decisão sobre o que pode ou não ser publicado passa a ser julgamental. Nas ditaduras, sempre há alguém definindo os conteúdos apresentáveis às massas; o princípio de ‘seletividade’ é o mesmo. Um dia, a humanidade se livrará de todas as espécies de ditadura e a liberdade de expressão será a mais abundante das commodities do planeta. Um dia…