Cronologia de um erro de avaliação: sobre preconceito e doenças mentais

Esse texto será quase um mea culpa, mas contém algumas reflexões, a serem digeridas ao gosto do leitor.

Tudo começou ontem. Havia ouvido falar de um vídeo onde um morador de um condomínio em Valinhos, cidade próxima à Campinas, destratava e ofendia um entregador de aplicativo. O ‘causo’ viralizou e ao final da tarde me deparei com ele.

A cena é ultrajante. O ofensor despeja frases preconceituosas contra o entregador de aplicativo, que reage de maneira educada e elegante, sem baixar o nível da discussão. O teor das ofensas estava vinculado à posição social e à cor do motoboy e o auge da ‘artilharia’ se dá quando o agressor gritava que seu interlocutor invejava sua ‘pele’.

É impossível assistir ao vídeo sem indignar-se, ele ultrapassa todas as fronteiras do que é tolerável, à prova de qualquer ‘passador de pano’. O conteúdo das agressões representa o que há de pior na humanidade, preconceito ‘raiz’, exemplo máximo de mesquinhez e canalhice.

Foi assim que me referi ao protagonista da cena, um grandalhão peso pesado, em completo descontrole. Merecia a intensa reação de repúdio que emanava das redes sociais. Um canalha. Compartilhei o vídeo em minha TL, sem poupar críticas ao agressor.

Obviamente que a reação unânime foi de indignação, quase uma catarse coletiva contra os impropérios desferidos de um ‘Golias playboy’ contra um ‘Davi trabalhador’ . Eis que surgem as primeiras vozes na minha própria TL, de que o agressor poderia sofrer de esquizofrenia, fato que inicialmente considerei como uma usual desculpa dos culpados por crimes.

Relatos de que o indivíduo tinha um histórico problemático de confusões seguiram, inclusive com o testemunho de quem já havia morado próximo a ele. Também houve a notícia de que seu pai havia comparecido à delegacia e confirmado o diagnóstico de ‘esquizofrenia’, sem maiores detalhes.

Quando vi a foto do agressor que circulou nas redes, já não tive mais dúvidas, era evidente que portava alguma doença mental, conclusão confirmada após comentário de meu irmão, psiquiatra, de que pelas cenas e o aspecto do protagonista, ele não tinha dúvidas de que se tratava de esquizofrenia.

Nesse momento, já sentindo-me culpado pela nota que havia redigido, acrescentei uma atualização, explicando de que poderia se tratar de um caso de doença mental. Isso obviamente não invalidaria a indignação com o conteúdo das ofensas, plenamente justificável, mas modificaria o veredicto sobre o seu autor, de canalha a doente.

Muitos comentários atribuíam a responsabilidade à família, por deixar que um doente tivesse a condição de sair de casa e agredir alguém verbalmente. Isso decorre do desconhecimento da situação. Um paciente com esquizofrenia grave em casa é um fardo possivelmente maior do que um dependente químico. A constituição física do agressor, segundo especialistas, muito obeso na parte superior do tronco, com o rosto muito inchado, já deve estar correlacionada ao uso frequente de doses cavalares de remédios.

Estima-se que a prevalência da esquizofrenia na população seja ao redor de 1%, mas obviamente boa parte deles são quadros leves. Quando a situação se complica, o paciente experimenta alucinações e comportamento violento, sendo frequentes os diálogos que não fazem sentido. Muitas vezes, a violência é direcionada contra próprios familiares. ‘Barracos’ são comuns. Doses muito altas de medicamento sedam o paciente, mas ao mesmo tempo comprometem sua capacidade cognitiva, trazendo-o para uma vida quase vegetativa. Então muitas vezes vive-se o dilema da dosagem adequada. Não raro, o paciente evita a medicação, e o quadro se agrava.

É de se imaginar, portanto, que a família do agressor já experimentou uma diversidade de situações constrangedoras causadas pelo comportamento errático do doente. Antes de culpá-la, é importante entender do que se trata essa doença. Como tenho caso parecido em minha grande família, posso garantir que é um desafio dos mais dificeis e que consome grande parte da energia e foco na rotina de uma casa. Os cuidados são incessantes e ao menor descuido, tudo pode piorar. É um martírio contínuo, sem solução.

Engana-se também quem pensar que os impropérios ditos pelo agressor tenham alguma relação com educação ou valores. Nos casos graves de esquizofrenia, os pacientes saem completamente da ‘casinha’.

Dito isso, chegamos às reflexões que eu gostaria de compartilhar.

Primeiramente, louvável a reação do entregador Mateus, que ao mesmo tempo não se rebaixou ao nivel do agressor e manteve-se altivo, nada subserviente. Ele não tinha nenhuma obrigação de saber da doença do ofensor, estava sendo verbalmente agredido enquanto fazia seu trabalho. Demonstrou um comportamento irretocável.

Destaque também para a reação quase unânime de indignação com o ocorrido. Embora ainda haja controvérsia em algumas situações de racismo, quando o mesmo é velado ou sujeito à interpretação, nesse caso, o conteúdo preconceituoso é inegável. Ninguém passou pano.

Por outro lado, a opinião é construída rapidamente, como é usual quando a informação flui em tempo real, e praticamente não há espaço para revisões no entendimento. Muito provavelmente as pessoas não se sensibilizarão com a doença do agressor e dispensarão a ele os mesmos adjetivos que direcionariam às pessoas normais. Poucos investirão tempo para entender do que se trata a esquizofrenia e suas consequência. O julgamento nas redes sociais é rápido e implacável, e não há recurso. Muito perigoso.

Em um outro comentário que fiz em um artigo referindo-me ao posicionamento das pessoas diante de temas da pandemia, coloquei que era muito importante que esperássemos o filme para conclusões definitivas, ao invés de nos atermos às fotos. O mesmo se passa em outras situações, quando nos antecipamos em um veredicto com base em informações superficiais. Esse foi um deles. O agressor foi linchado virtualmente, inclusive por esse escriba. Ninguém considerou que poderia de fato ser um doente mental. Isso não muda o teor negativo e inaceitável de suas palavras, mas altera completamente a culpabilidade.

Eu particularmente me arrependo de ter feito esse juízo de valor antecipado e atribuído ao doente a pecha de canalha. Me excedi, e faço um mea culpa por isso. Não tenho noção de como foi a jornada desse sujeito até aqui e nem o fardo que sua família carregou, mas posso imaginar, pois gente muito próxima a mim passou por isso. Nessas condições, não poderia julgar o sujeito. Mas como eu iria saber, certo? Certo. Deveria ter aguardado antes de emitir a opinião. Surfei a onda da indignação.

Sabemos muito pouco sobre doenças mentais, que afligem um percentual considerável da população. Quando graves, tornam-se um tormento às pessoas próximas. Há pouca empatia em relação a esses doentes, e menos ainda a disseminação de conhecimento sobre seus sintomas, tratamento e consequências, exceto obviamente entre os especialistas e impactados. É uma pena.

Vivendo e aprendendo. Da próxima vez, seguirei minha cartilha e esperarei pelo filme, evitando a influência, mesmo que extraordinária, da foto.

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