SAMPA 461

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Passei quatorze dos meus quarenta e dois anos em São Paulo. É a cidade que mais vivi, superando inclusive minha terra natal, Curitiba. Sou paulistano por adoção. Mais um entre milhões que essa gigantesca metrópole acolheu. Também sou paulistano por opção. Troquei Londres, a capital do mundo, por São Paulo. Duas vezes. Sei que o destino dificilmente me reservará uma terceira chance. Não importa. E se o fizer, uma possibilidade é repetir minha insana escolha: Sampa, essa velhinha aniversariante que completa 461 anos.

Fossem as cidades mulheres, Sampa seria um caso paradoxal nas ‘conversas etílicas’ masculinas, dividindo opiniões e gerando sanguíneas discussões entre os que a amam e a detestam, que não entenderiam a atração que aquela mulher, sem as curvas exuberantes do Rio de Janeiro ou Hong Kong, a sensualidade de Madrid ou Barcelona, a elegância de Nova York, a sofisticação de Londres, a cultura de Paris, o ar descolado de Roma, e ‘praiano chique’ de Miami, exerce sobre os seus admiradores.
‘Como pode? Sampa não é bonita, até meio baranga! Há dias em que se veste bem, em outros está como uma mendiga! Está sempre apressada, agitada, muitas vezes nem nos cumprimenta, no máximo um beijinho no rosto e olhe lá…! Em um dia frequenta altas rodas, fala vários idiomas, em outro cai no pagodão sem a menor compostura! Pensa em trabalho 25 horas por dia, chega a ser chata! O que vocês viram nessa mulher??, perguntariam seus detratores após a segunda taça de vinho.
Seus admiradores  não discordariam desses argumentos, mas nem por isso tornariam-se imunes ao misterioso fascínio que a Paulicéia exerce sobre eles. ‘Quer saber?’, bradariam os mais exaltados após a terceira taça, ‘Sampa pode ser tudo isso, mas se um dia eu estiver mal e ligar para ela em plena madrugada…ela irá atender, me ouvir e ainda me chamar para comer a mais saborosa das pizzas!’ E quem disse que ela é baranga?’, retrucaria alto um outro admirador, sacando uma foto dela guardada na carteira, e jogando-a sobre a mesa, ‘tudo depende do ângulo que você está vendo! ‘. Um murmúrio de admiração ecoaria no lado dos detratores…’Nem tão baranga assim’, pensariam. ‘ E tem mais!’, gritaria um terceiro admirador, ‘ não há mulher no mundo capaz de te levar a tantos lugares diferentes como ela! E ainda cozinha bem! ‘ . De bate pronto, ele ouviria uma réplica inconformada: ‘ e faz você gastar um dinheirão, essa mulher além de tudo é perdulária! ‘
Trata-se de uma discussão eterna, sem vencedores. Mas os detratores de Sampa, por mais que se manifestem efusivamente contra ela, no fundo nutrem uma intrigante curiosidade a seu respeito. Cedo ou tarde, acabam reconhecendo o seu valor.
Quando criança, conheci São Paulo através da Marginal. Era o meio do trajeto entre Curitiba e Rio de Janeiro. Cidade infinita. Nos tempos de universitário, me surpreendia com o ritmo frenético das suas vias, assim que recebia o fluxo de veículos da Rodovia dos Bandeirantes. Cidade vibrante. Nessa época, era assíduo frequentador do Terminal Rodoviário Tietê, entre Campinas e Curitiba. Me assombrava aquele formigueiro humano que ligava São Paulo a qualquer ponto do Brasil. Cidade conectada. Já morador, não foram poucas as vezes em que me irritei com um trânsito bestial, causado ou pelos alagamentos de verão, que já duram décadas, ou por qualquer razão banal. Cidade alagada e imobilizada. Sofri tentativa de assalto, presenciei tiroteio, tive amigos vítimas de sequestro relâmpagos. Cidade violenta. Acompanhei triunfos e fracassos dos três grandes times da capital. Silenciei nos triunfos e azucrinei nos fracassos. Cidade esportiva. Fui a shows memoráveis de artistas nacionais e internacionais, uma rotina no circuito paulistano. Cidade cultural. Experimentei os mais diversos restaurantes, muitas vezes em companhia de estrangeiros extasiados pela qualidade do atendimento, e principalmente da comida. Cidade gastronômica. Aqui eu trabalhei, estudei, trabalhei, estudei, trabalhei. Cidade locomotiva. Tenho três ‘guris’ paulistanos. Eles não falam ‘ leitE quentE’, como um dia eu fiz. Em breve, dirão algo do tipo: ‘ Pai, você não está eNteNdeNdo, meu!’. Cidade ‘lar’. Não raramente submetida à administrações ineficientes – progride, apesar delas. Hoje, se vê frequentemente inundada, mas aflitamente seca. Cidade resiliente.
  
Seus defeitos são muitos e conhecidos. Uma das diversões dos paulistanos é criticar a própria cidade, sintoma de ‘amor envergonhado’. Muitas de suas mazelas estão vinculadas à ‘Pátria mãe’, poucas são exclusivas. Por outro lado, boa parte de suas virtudes são particulares, construídas ao longo de quase cinco séculos de história.
Há 461 anos, no pátio do colégio, nascia uma das cinco maiores metrópole do planeta, patrimônio e motor de uma nação, símbolo de nossa diversidade cultural, miscigenação tropical, cidade que não pára, exemplo dos nossos fracassos e sucessos, esperança do nosso futuro. Parabéns Velhinha!!!
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