Desde antes de eu saber ler, um livro ocupava a estante dos meus pais. Incidente em Antares trazia na contracapa a foto do seu autor, Érico Veríssimo, numa bela rua de Porto Alegre. A imagem daquela foto me marcou e, desde que a vi, queria conhecer a tal rua.
A vida foi lá se desenvolvendo e o filho daquele senhor simpático começou a fazer sucesso, e suas crônicas, sutis, engraçadas, eu conhecia na famosa coleção “Para Gostar de Ler”.
A Velhinha de Taubaté surgiu lá pelos anos 80 e eu gostava de imaginar que a personagem fictícia era inspirada em alguma das minhas tias-avós que moravam naquelas bandas. Não sei se fiz justiça adequada a todas elas, uma vez que foram pessoas com quem nunca convivi e de quem tenho apenas vagas lembranças.
O LF Veríssimo seguiu na minha vida com suas crônicas, livros que eu mesmo comprava ou ganhava de presente de aniversário, percebendo as nuances e as mudanças de comportamento do Brasil.
Adorava o Analista de Bagé, com sua técnica direta do “joelhaço”, que, sem mais delongas, dizia a verdade para qualquer vivente que se sentasse no seu divã. Hoje, às vezes penso que alguns analistas deveriam ler o Analista de Bagé, que não ficava circundando e ia direto ao ponto.
Uma outra crônica fantástica falava de um casal que, vendo seus filhos tendo problemas de aceitação na escola, onde cada vez mais casais se separavam e deixavam as crianças revoltadas, resolveu fingir brigas e separação para que as crianças se sentissem mais acolhidas por seus amigos. Todavia, o casal continuava se encontrando secretamente no motel.
Curiosamente, a minha primeira viagem num avião comercial dentro do Brasil foi para Porto Alegre, e acabei ficando hospedado a uma quadra da casa dos Veríssimos. Nessa época, finalmente conheci a Felipe de Oliveira, no bairro Petrópolis.
Mais curioso ainda foram as voltas que a vida foi dando e que me levaram de volta a Porto Alegre, dessa vez para trabalhar, lá nos idos de dezembro de 1998. Não conhecia quase ninguém, mas, na noite de Natal, um amigo de um amigo acabou me levando à casa dos Veríssimos.
Tocamos a campainha e alguém atendeu, prontamente nos direcionando à festa dos jovens, organizada por Pedro Veríssimo. Mas, antes, passamos obrigatoriamente pela sala e lá estava Luís Fernando Veríssimo em pessoa, observando cada um que entrava. Dona Mafalda, sua mãe, ainda estava viva e nos saudou.
Durante a festa, perdi a timidez e fui perguntar se a Velhinha de Taubaté havia sido inspirada em alguma das minhas tias-avós, mas não havia sido. Mas pude compartilhar minha experiência e o quanto pensava nas minhas tias-avós, que, de fato, nunca mais vi.
Os anos foram passando como o Tempo e o Vento e como voam os anos. Às vezes gostava de frequentar um restaurante japonês muito querido do LF Veríssimo.
No Hospital de Clínicas de Porto Alegre, onde trabalhei, fiz amizade com um casal de médicos, vizinho de muro e amigo de décadas da família Veríssimo. Eles me contavam de situações inusitadas de quando o Veríssimo surgia na casa deles, sem avisar, para ver algum jogo do Internacional, já que, por muitos anos, não teve televisão em casa.
Cheguei a tomar um café na esquina com o ilustrador, artista, designer e professor Joaquim da Fonseca, que foi meu vizinho na Fernandes Vieira e foi ilustrador de vários livros do LF Veríssimo.
Algumas vezes, não tive tanta sorte e perdi uma canja que Chico Buarque deu após um show em Porto Alegre, indo para o bar a convite do LF Veríssimo.
Tive sorte de ser convidado para um aniversário de uma amiga em comum, onde Veríssimo, sentado na mesa ao lado, observava tudo, falava pouco e dava seu sorriso enigmático e contido, que soava como gargalhada.
Em 2012, acompanhei de longe sua batalha contra uma gripe que o levou à UTI. Alguns colegas cuidaram dele e, ao final daquele episódio, ele declarou:
“A morte é uma sacanagem. Sou cada vez mais contra.”
Hoje, dia 30 de agosto de 2025, Luís Fernando Veríssimo se foi desta vida. Desde o seu acidente vascular cerebral em 2021, ele falava menos ainda, não mais escrevia, mas ainda desenhava.
Ele me viu por duas oportunidades apenas e nunca soube meu nome. Eu fui apenas um entre as milhares e milhares de pessoas com quem ele cruzou no caminho. Mas sou profundamente grato pelo tanto que ele me trouxe de gargalhadas, boas memórias, por essas curtas interações, por ser um grande amigo dos meus amigos, pela Velhinha de Taubaté, pelo Analista de Bagé e tantos outros.
“A morte é uma injustiça, essa é a melhor descrição. Mas a gente tem de conviver com isso.”
@~Márcio Herve