“Dr… estou ficando louca?”

A senhorinha chegou para sua primeira consulta como geralmente chegam todas as primeiras consultas ao psiquiatra – exaurida, fragilizada, sem brilho, carregando o mundo sobre os ombros, como se cinza fosse. 

Intimamente com uma fagulha de esperança que o médico possa ajudar e transformar esse status que geralmente se arrasta por meses ou anos.

Do outro lado o profissional tentando ativar todas as percepções, entender o histórico clínico, familiar, psiquiátrico, destrinchar os sintomas, os tratamentos já tentados, as interações medicamentosas, fazer um raciocínio clínico. 

Mas a senhorinha não veio sozinha à consulta, quem a trouxe foi uma filha – sempre bom contar com mais informações sobre o caso. Nem sempre o paciente fala tudo o que deve, faz ou sente… seja porque os próprios sintomas impedem, por distração, por julgar desimportante, ou por vergonha mesmo. 

Após longa conversa somente com a paciente, já estabelecido algum entendimento do histórico e do exame do estado mental, a porta do consultório é aberta e gentilmente é solicitado que a filha entre para acrescentar à consulta. 

Senhorinha Jr. aguardava na sala de espera, com o celular na mão, scrolling down seu aplicativo do Instagram, enquanto na TV passava o excelente documentário “O Mistério do Samba”. Nesse momento, Marisa Monte cantava “Carinhoso” com Paulinho da Viola – gravação épica. 

Perguntado se Senhorinha Jr. havia gostando do documentário. Respondeu que nem havia prestado atenção. Uma pena… Senhorinha Jr. não sabe quão difícil é conseguir um exemplar desse filme que deveria ter a repercussão mundial que teve Buena Vista Social Club. 

Senhorinha Jr. sentou ao lado da mãe, repousou o celular no colo com a tela virada para cima e por aproximadamente 20 minutos trouxe informações importantes sobre Senhorinha e a família. Em todo esse período, cada vez que o celular brilhava trazendo alguma notificação, Senhorinha Jr. dava uma rabeada de olho para saber o que era, sem interromper seus relatos. 

Assim que o psiquiatra voltava a falar direcionando-se para Senhorinha, a filha dava uma leve inclinada na tela para o devido reconhecimento facial, desbloqueava o aparelho do capeta e retomava seu scrolling down nas notificações e redes sociais. 

E assim seguiu-se alguns outros minutos da consulta, com um diálogo entre médico e paciente, com eventual complementação de um boneco hipnotizado que nesse momento palpitava sem sequer desviar o olhar da tela. 

Mas o momento pungente da consulta não foi na explicação da estratégia terapêutica, mas quando Senhorinha lembrou de relatar um sintoma que não havia comentado: “Me sinto muito sozinha, mesmo tendo a casa movimentada. Não me deixaram um dia sequer nessa pandemia, ainda assim me sinto muito só”. 

Senhorinha Jr, dando likes no Instagram, sem desviar o olhar da tela da hipnose, complementou: “É verdade, mesmo a gente estando sempre com ela, sempre reclama de sentir solidão”. 

Foi nesse momento que o profissional se sentiu na obrigação de manobra arriscada e provocativa – dessas que muitas vezes fazem o paciente nunca mais voltar e ainda sair falando muito mal do atendimento.

Com o cuidado de quem tenta desarmar uma bomba, respirou fundo e mandou: “Bom… se todo mundo que vai na sua casa fica vidrado no celular como Senhorinha Jr., nada mais natural sentir-se abandonada. Pode ser que isso não seja um sintoma”.

Cortava-se com uma faca a densidade posta no consultório… eternos segundos de um climão estabelecido.

Atrás das máscaras só se via que o psiquiatra levantou uma das sobrancelhas. 

Que Senhorinha Jr. levantou levemente ambas as sobrancelhas, ajeitou os ombros e as costas que se largavam sobre a digitação do smartphone e guardou o ladrão de tempo de vida na bolsa. 

Já Senhorinha, deu um suspiro, sorriu com os olhos e fez a pergunta corriqueira nas primeiras consultas: “Então não estou ficando louca, né doutor?”…

E você? Hoje em dia você usa o celular ou o celular te usa? Quanto de vida vivida você vem perdendo atrás da telinha?

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